Os contactos secretos de alguns bispos (anglo-católicos) da Igreja de Inglaterra com o Vaticano, noticiados pelo Daily Telegraph, foram realizados, alegadamente, em nome da “ortodoxia tradicional” que estaria hoje em perigo na Igreja Anglicana. Como se sabe, o que, segundo esses prelados, põe em perigo a “ortodoxia tradicional” é o reconhecimento de ministros ordenados com uma orientação homossexual assumida e a ordenação episcopal de senhoras (que já podem ser ordenadas diaconisas e presbíteras na Igreja de Inglaterra). Pode compreender-se as suas reservas sobre estes assuntos, mas duas coisas não podem deixar de causar espanto.
Primeiro, em nome da “ortodoxia tradicional”, estes bispos mantiveram (ou mantêm) contactos com Roma sem que, aparentemente, questões que qualquer cristão no seu perfeito juízo considera muitíssimo mais importantes pareçam ser problema: a questão da presença real de Cristo na santa ceia (eucaristia), a natureza sacramental dos ministérios ordenados, o dogma da infalibilidade papal e os dogmas da ascenção e da imaculada conceição da Virgem Maria. Todas estas questões, que os XXXIX Articles of Religion, o Book of Common Prayer e os pontos do Lambeth Quadrilateral do Anglicanismo claramente repudiam parecem não ter importância nenhuma perante as questões da ordenação de senhoras e do reconhecimento de ministros ordenados homossexuais; aliás, do que se depreende das declarações anónimas ou nem tanto de alguns destes bispos, estas duas questões são muito mais centrais do que as que têm dado consistência teológica ao Anglicanismo há quase quinhentos anos. São estes bispos que denunciam a secularização e a descristianização actual na Igreja de Inglaterra, mas que põem em segundo plano questões teológicas e eclesiológicas centrais para darem centralidade a questões de género e de orientação sexual, de modo a justificarem a sua iminente ruptura e os contactos com Roma.
O segundo ponto diz exactamente respeito a estes contactos. Para não entrar em processos de intenção, convém não comentar demoradamente o que este comportamento significa em termos de deslealdade em relação aos respectivos sínodos (que têm representantes do "clero" e do "laicado") e ao conjunto do colégio episcopal da Igreja de Inglaterra, do qual aqueles bispos receberam a sua ordenação (para já não falar do compromisso de lealdade para com a suprema governadora da Igreja – ao assumirem a púrpura e ao entrarem na câmara alta do Parlamento por inerência de funções –, argumento que nos dias de hoje deve valer tanto junto desta opinião cristã quanto o juramento de um agnóstico sobre o Santo Evangelho). Estes contactos, no estado actual da crise no “clero” anglicano, representam a assunção de um ponto de não retorno na divisão do episcopado (evidente na desautorização do arcebispo de Cantuária), que fragiliza a Igreja de Inglaterra, que dá força a todos os seus inimigos e torna mais vulnerável a sua posição constitucional perante o assalto dos que querem o disestablishment e a consagração de um Estado secular, quiçá «laico» (mais um na Europa).
Estes são, para já, os resultados prováveis de uma acção muito grave de bispos que não podem admirar-se se forem acusados de utilizar as questões da homossexualidade e da ordenação feminina no ministério pastoral para realizarem uma ruptura que já estava feita a nível teológico e eclesiológico, mas que como tal não foi assumida. Só um espírito fleumático e ainda e sempre guiado pelo senso comum pode inspirar os sínodos da Igreja de Inglaterra a cerrar fileiras em torno dos bispos leais e dos bons princípios de unidade na certeza, liberdade na dúvida e caridade em tudo.