Capa do novo manual de História e Geografia de Portugal de 5.º ano da Santillana. Ver aqui. |
Aquilo que sente ao ver o livro já impresso não é exactamente o mesmo que sente um profissional análogo em edições gerais - esses editam em grande quantidade livros de texto, que não foram trabalhados com tanto detalhe, corte, recorte e acrescento, polimento e atenção ao pormenor, página a página. Qualquer profissional deste segmento do mercado editorial olha para estes produtos como um artesão olha para um produto finalizado, feito pelos do seu ofício: com olhos de quem sabe que tudo foi feito e refeito, observado, pensado e mexido, percebendo o que está mais ou menos conseguido, apreciando mais ou menos as soluções e acabamentos encontrados, adivinhando a experiência, a sensibilidade e as competências de quem editou o projecto. Várias pessoas contribuíram para o manual (desde logo os autores), mas foi o editor que coordenou todo o processo; foi por ele que passou o trabalho de todos, foi ele que aprovou o contributo de cada um ou o substituiu ou modificou, foi ele que foi tomando decisões que permitiram que os diferentes contributos convergissem num produto coerente e acabado.
O olhar sobre o manual escolar finalizado e impresso, do ponto de vista do editor, é feito a vários níveis: enquanto produto de arte gráfica, enquanto produto de texto, enquanto produto que reproduz variada iconografia, enquanto produto didáctico. Ao observar e manusear o manual, vemo-lo como uma obra que em nós desperta ou não uma sensação de equilíbrio nos sentidos e de satisfação estética; lemos o texto e este ou nos agarra e conduz na sua narrativa ou não; analisamos toda a parte iconográfica (dando como adquirida a sua boa qualidade intrínseca) e ou ela se articula bem com o texto e funciona como uma extensão natural do conteúdo discursivo daquele ou não; simulamos o manuseamento do manual como se fôssemos utilizadores (docente ou discente, num exercício difícil e falível, mas necessário) e, nele, os elementos expositivos e práticos ou se articulam bem e nos puxam para o prazer de o explorar e utilizar ou não. É neste olhar a vários níveis que nos apercebemos se temos nas mãos e sob os nossos olhos um nado-vivo literário, estético e didático ou algo que apenas na forma se lhe assemelha.
Não é raro, meio a sério, meio a brincar, alguns de nós tratarmos estes livros como "filhos". É um sentimento instintivo, mas que me foi desaconselhado logo no primeiro ano de trabalho na Santillana por um editor veterano da casa-mãe, Julián Abad Caja, preocupado em incutir-nos um género de espírito crítico metódico em relação ao nosso próprio trabalho. Esse distanciamento não é nem pode ser instintivo depois de um ano de tanta dedicação e preocupação, de centenas de horas revendo e refazendo originais, seleccionando imagens, acompanhando o trabalho de gráficos e desenhadores e, depois, a paginação em várias provas, com novas revisões e sempre mil e um ajustamentos. Mês após mês, vemos o livro a tomar forma e começamos a imaginá-lo já parecido com o que ficará. De repente, o trabalho duro inicial dá lugar a uma relação com algo que já tem identidade e ao qual nos começam a prender emoções fortes (de reconhecimento no que vemos, de defesa instintiva, de irritação por nos absorver quase toda a energia). O sentimento de paternidade, por mais alegórico que seja, parece justificado.
Mas o Julián tinha razão: a melhor maneira de fazer um manual escolar crescer é ver logo para lá dele. Esse «amor» tem de conter também a predisposição para o superar. Passa, pois, por antecipar as suas dificuldades, por equacionar outras opções, por saber ver nos outros, seus concorrentes, elementos a ter em consideração. O nosso verdadeiro «filho», enquanto editores, é a nossa produção continuada, de que cada manual (e cada ano) é apenas uma «geração» ou uma fase. E para educar, ou ajudar a crescer, é necessário esse exercício crítico em relação aos objectos do nosso trabalho - ou do nosso amor. E poder aqui colocar «trabalho» e «amor» como sinónimos ou equivalentes é um motivo de gratidão.