Comentário ao paper de Miguel Duarte "O que é o Ambientalismo de Mercado?" (reunião 02.05.2002 da Causa Liberal)
Considerações prévias:
O paper apresentado pelo Miguel Duarte parece-me ter um ponto de partida correcto ao identificar como vectores da gestão dos recursos naturais os seguintes quatro princípios (doravante os 4 MAGNÍFICOS): 1. a defesa dos direitos à propriedade privada; 2. o(s) mercado(s) competitivo(s); 3. os preços que incorporem os custos reais do produto; 4. e leis que responsabilizem aqueles que provoquem danos à propriedade alheia. Nesse sentido, o paper refere ainda, e correctamente, casos em que a ausência destas condições conduziu à destruição e desperdício dos recursos naturais, em geral quando mecanismos de gestão burocrática foram introduzidos em nome de uma prevenção dessa destruição ou desse desperdício.
Mas algumas soluções apontadas para remediar as falhas evidentes da gestão burocrática dos recursos naturais (nomeadamente as trocas de quotas e os impostos ambientais) parecem-me estar em contradição com os 4 MAGNÍFICOS; e o mesmo acontece com a orientação geral que preside ao paper e que aponta para "soluções pragmáticas" (conclusão). Essas "soluções pragmáticas" do Ambientalismo de Mercado dão espaço a alguns mecanismos da economia de mercado mas não estabelecem um verdadeiro Mercado Ambiental; este último é, porém, o que julgo necessário para que a gestão dos recursos naturais se faça no respeito dos 4 MAGNÍFICOS.
"Trocas de quotas":
O conceito de quota levanta dois problemas: 1) é aparentemente uma alternativa ao pleno estabelecimento de direitos de propriedade privada sobre recursos naturais e 2) pressupõe a existência de uma autoridade (o Estado) que possui, retalha e concede porções de "bens comuns" (ou "públicos") à gestão privada. Por outro lado, a possibilidade de os privados "trocarem" essas quotas parece ser, ou um eufemismo para evitar dizer que os privados podem comprar e vender essas quotas, ou uma forma de deixar a porta aberta a uma regulação burocrática desse comércio de quotas. Tal situação viola o 1.º e o 2.º dos 4 MAGNÍFICOS.
Os exemplos dados no paper de recursos geridos sob o sistema de quotas (atmosfera com emissões de CO2 ou bancos de pesca, p.e.) pressupõem sempre que a burocracia estatal ou as decisões políticas estabeleçam arbitrariamente níveis e condições de utilização; o que não se percebe é como é que se espera que essas decisões sejam as correctas sem se acreditar supersticiosamente que "o homem no Terreiro do Paço sabe melhor o que todos devem fazer". Se a "troca" de "quotas" é tão boa, por que razão não se admite que isso decorre da qualidade ainda melhor da plena propriedade privada dos recursos e da sua livre transacção no mercado?
"Impostos ambientais":
Este esquema que qualquer liberal compreende seja do agrado do Estado, poderia ser defensável se entendessemos que os recursos naturais fossem necessariamente "bens comuns" (ou "públicos"); não tem, no entanto, razão de ser num quadro em que se admita a propriedade privada desses recursos. Entre privados, o que estaria em causa em casos de agressão a recursos seria a violação de direitos de propriedade e um conflito a ser dirimido na Justiça (mesmo que, hipoteticamente, o Estado fosse um dos proprietários, o que lhe permitiria exigir compensações em tribunal, mas não cobrar impostos); este é o único entendimento consequente que se pode ter do 4.º dos 4 MAGNÍFICOS.
O estabelecimento de "impostos ambientais" (a sua incidência, montante, etc.) pressupõe igualmente que se acredite que o "homem no Terreiro do Paço sabe melhor o que todos devem fazer": como se pode saber o que taxar, quanto taxar e como taxar, a não ser admitindo que se está previamente na posse de todos os dados relevantes sobre as causas e os resultados da acção humana? Por outro lado, coloca-se um problema de equidade, já que os ricos e poderosos podem com este sistema poluir mais e os pequenos proprietários com recursos agredidos têm de esperar um improvável reembolso do Fisco; a única via de igualdade perante a lei é qualquer recurso natural ser possuído privadamente e a sua integridade e usufruto, independentemente de natureza ou tamanho, poderem ser defendidas na Justiça pelo proprietário, quer se trate do ar que respiro dentro do meu apartamento quer da porção da atmosfera de um hipotético Parque Natural da Peneda-Gerês S. A.
Eliminação de subsídios (prejudiciais ao meio ambiente):
Da leitura do paper fica a dúvida se se admite que há subsídios (estatais) que não sejam prejudiciais ao meio ambiente; este comentário, em todo o caso, não admite tal possibilidade. Qualquer subsídio concedido a Fulano agride os direitos de propriedade de Beltrano e Cicrano, mais que não seja porque o Estado distribui recursos a um que antes retirou a outro. No caso dos recursos naturais privadamente possuídos, não se vê por que razão qualquer sua utilização particular deveria merecer uma tal "ajuda": mais uma vez a única hipótese é admitir-se que o "homem no Terreiro do Paço" está na posse de algum segredo que o comum dos mortais (e, mais inverosimilmente, aqueles que têm e conhecem esses recursos) desconhecem.
Só a eliminação de qualquer subsídio é compatível com a implementação real (e, portanto, plena) do 3.º dos 4 MAGNÍFICOS. O financiamento de qualquer exploração particular de recursos naturais deve ser deixado aos mecanismos do mercado (nomeadamente a banca) e à assunção dos riscos e responsabilidades decorrentes pelos agentes privados envolvidos.
"Ajudar o mercado a funcionar":
Estas ajudas, entendidas no paper como disseminação de informação sobre ou de critérios de classificação, aprovação e desaprovação de acções de agentes económicos particulares (com o intuito de influenciar a opinião pública e pressionar os agentes particulares a modificar as suas escolhas) é algo que a sociedade civil tem mostrado saber fazer por si mesma. Este "aumento da informação ao consumidor" deve processar-se dentro da moral liberal do mercado livre de ideias, evitando qualquer tentação de querer recorrer ao Estado para que este ajude a impor as "mais verdadeiras" ou as que, mais uma vez, o "homem no Terreiro do Paço" sabe serem as mais verdadeiras.
A questão, pois, não é tanto ajudar o mercado a funcionar, mas antes deixá-lo funcionar plenamente no campo das ideias e das causas, respeitando sobretudo os dois primeiros dos 4 MAGNÍFICOS: 1.º as causas em torno de determinadas ideias e opções são (devem ser) elas mesmas realidades privadas, privadamente geridas, porque ninguém é dono da verdade e a procura de ideias, sua aplicação e divulgação é um processo de descoberta que ninguém deve poder controlar ou possuir em exclusividade; 2.º assim, o debate não inquinado nem falsificado sobre questões ambientais requer um mercado competitivo de causas, o que pressupõe a sua livre expressão e organização sem interferência do Estado (quer para “ajudar” quer para prejudicar).
Alegadas "falhas do mercado":
O paper alega que há "falhas" do mercado, p.e. no estabelecimento de direitos de propriedade sobre o ar ou a atmosfera (a que insiste chamar "bem comum" aparentemente por princípio ou inevitabilidade, quando o é apenas por disposição dos ordenamentos jurídicos vigentes). Essa falha revelar-se-ia ainda no facto de a sua privatização alegadamente exigir uma burocratização maior do que a existente para se manter: não se vê porquê e o paper também não nos faz o favor de explicar. A "dificuldade" de privatizar a atmosfera ou o mar ou os rios, é tão grande ou tão pequena como privatizar a terra (e esta tem suportado aparentemente bem o regime de propriedade privada); a burocratização só se deu pelo facto de o Estado ter querido planear a gestão dos recursos da terra em vez de a deixar ao mercado. Por que razão seria isso diferente com a atmosfera, os mares ou os rios?
A privatização destes recursos, dadas as suas características naturais (p.e. grande facilidade de transmissão de substâncias tóxicas a espaços de outrém), concorreria até para uma maior responsabilização dos agentes privados sob um regime de estricto respeito pelos direitos de propriedade e teria um efeito muito mais disciplinador sobre proprietários temerosos de agredir os recursos do vizinho e serem processados. A delimitação dos espaços aéreos, fluviais e marítimos é já feito entre Estados e não há nenhuma razão para se pensar que o mesmo princípio não é aplicável à delimitação entre privados; e, tal como a delimitação entre Estados é regulada pelo Direito Internacional, os vários ordenamentos jurídicos estariam igualmente capacitados para fazerem valer os direitos de propriedade privada (mesmo nos casos em que se coloca o problema p.e. de cardumes que atravessam esses limites mas que podem ser objectos de propriedade negociada entre vários proprietários).
A privatização como modus operandi dos 4 MAGNÍFICOS:
A gestão de recursos, de quaisquer recursos, é optimizada pelos mecanismos da economia de mercado resumidos nos 4 MAGNÍFICOS. O alegado carácter excepcional dos recursos naturais tem sido o esteio do autodenominado Ambientalismo; para combater os seus erros não basta fazer cedências "pragmáticas" ao mercado, introduzindo mecanismos que também são falsas soluções. A plena extensão da propriedade privada aos recursos naturais é a única via que permitirá aos 4 MAGNÍFICOS operarem as mudanças necessárias na relação do Homem com o Meio Ambiente, acabando com os erros derivados da superstição planificadora e "preventiva" da burocracia estatal. Ao Ambientalismo de Mercado (que introduz parcialmente aparentes mecanismos de mercado numa lógica estatista e planificadora de gestão de recursos) é necessário responder com o estabelecimento de um verdadeiro Mercado Ambiental, uma economia de mercado dos recursos naturais assente nos direitos de propriedade privada e na liberdade de empreender e interagir dos proprietários.