[Paper apresentado a 19.01.2002 ao 12.º Encontro de História Religiosa Contemporânea.]
1. A salvação como componente básica do “sistema religioso” (e da sua “lógica”):
O sentido original da palavra salvação é «vitória sobre ou fuga do perigo, da derrota ou da perturbação» e é dela que derivam os nomes de Josué, Oseias, Isaías e Jesus (COOGAN, Michael D. - s.v. «Salvation», The Oxford Companion to the Bible, Oxford: O.U.P. 1993, pp. 669-670). A origem bíblica do termo remete, pois, para o significado bastante literal e concreto, quase “físico”, com que a palavra é usada coloquialmente. Neste sentido, é difícil não ver a questão da salvação como intimamente ligada a todo e qualquer fenómeno religioso: as pessoas em geral aderem às coisas que acreditam as faz livrarem-se de ou triunfarem sobre “o perigo, a derrota ou a perturbação”. Deste modo, a salvação não seria assim tão específica das religiões ditas “de salvação” (como o cristianismo), embora nestas talvez apareça numa forma mais consciente e explícita. A salvação seria uma componente básica de todo o universo religioso, independentemente da maior ou menor intensidade, ou da carga mais ou menos dramática, com que essa componente soteriológica é equacionada no discurso ou na simbólica de cada religião; e a salvação pressuporia sempre que a relação do crente com a religião passe pela assunção mais ou menos consciente, por parte do primeiro, de um estado de necessidade. A partir daqui, as diferentes religiões variam quer na definição dessa necessidade quer nos meios de a remediar. E variam igualmente quer no papel que dão ao próprio crente nesses meios de remediar a necessidade quer no papel da sua relação com os seus semelhantes. Ilustremos: a Reforma protestante, ao questionar a eficácia da mediação clerical como meio do crente poder suprir (ou gerir com maior eficácia) o seu estado de necessidade para com Deus, alterou o papel que o crente tinha tradicionalmente nas concepções e nas práticas do cristianismo medieval e diferenciou-se das propostas religiosas que mantiveram essas concepções e práticas.
2. Paralelismos entre as “lógicas” dos sistemas “religioso” e “económico”:
Dito isto, não parece abusivo notar o paralelo entre, digamos, a lógica do “sistema religioso” e a lógica do “sistema económico”: em ambos partimos de a) uma situação de necessidade dos agentes que, para ser suprida eficazmente, requer b) uma gestão determinada de bens que são escassos. Em ambos os casos, a gestão desses bens escassos consiste, por parte dos agentes, num processo de escolhas frequentes: para suprirem o seu estado de necessidade, os agentes tomam decisões que têm consequências. Aliás, toda a literatura sapiencial antiga, reflectida em grande parte do Antigo Testamento, consiste num conjunto de conselhos que tentam persuadir o crente (agente religioso), perante determinadas situações-tipo, a tomar decisões num certo sentido – sendo-lhe assegurado que isso lhe abrirá o caminho da salvação (i.e. da vitória sobre o seu estado de necessidade para com Deus). É, porém, fundamental observar-se que, se os antropólogos não nos enganam, a origem do “sistema religioso” está intimamente ligada, nos primeiros homens, à consciência de um estado de necessidade concebido de forma extremamente “física”, material, “utilitária” (características normalmente imputadas à lógica do “sistema económico”). De facto, nas primeiras religiões conhecidas, os ritos parecem destinados a responder a problemas de subsistência material imediata: garantir a simpatia das forças sobrenaturais era um meio de conseguir caça, colheitas, saúde ou segurança física e não tanto uma forma de alcançar um estado “espiritual” de justificação ou de beatitude perante Deus. A consciência dos seres humanos era, aparentemente, uma consciência de necessidades, dir-se-ia, “primárias”, que o “sistema religioso” reflectia e exprimia. Já foi notado por historiadores que, na Mesopotâmia antiga, a concepção então existente de bem-estar levava a que tanto a construção de canais de irrigação como a construção de templos fossem vistas como partes da mesma empresa “religiosa” (uma empresa em que, na verdade, tal como no Egipto, aquilo a que hoje chamamos o “sistema religioso” – ou soteriológico – e o “sistema económico” não se distinguiam). O templo sumério ou o rei-sacerdote egípcio eram instituições que geriam, devidamente fundidos, aqueles dois universos que hoje tendemos a diferenciar. Para homens que olham para a Natureza como uma realidade sacralizada, o estado de necessidade “económica” não tinha autonomia em relação ao universo “religioso”, tal como este tinha de ser construído de forma a exprimir (e a apaziguar) a componente “física”, material (nós diríamos “económica”), desse estado de necessidade em que as pessoas se sentiam no mundo.
3. A diferenciação histórica dos sistemas “religioso” e “económico”:
O “sistema religioso” foi depois transformado pelo impulso daquilo a que Karl Jaspers chamou a Época Axial da emergência da consciência da individualidade e da interioridade no Homem (Iniciação Filosófica, Lisboa: Guimarães Editores, 1993, 8.ª ed., pp. 94-97): tratou-se de um “salto” importantíssimo porque, na consciência humana do seu estado de necessidade, diferenciou-se o natural do espiritual, abrindo-se caminho para a dessacralização da Natureza e da relação do Homem com ela. O estado de necessidade, no campo especificamente religioso, tendeu a ser entendido de forma cada vez mais centrada no indivíduo e na sua interioridade e, portanto, numa relação individual e interior com uma divindade transcendente à Natureza, o que desvalorizava e esvaziava os elos de ligação do mesmo indivíduo ao mundo natural e até, em certa medida, ao meio social e cultural em que nascera (de certa forma também dessacralizado). Essa dessacralização foi mais longe nas experiências que, derivadas da Época Axial, mais aprofundaram na emergente consciência da individualidade-interioridade do Homem a componente de reflexão antropológica: a tradição judaico-cristã-islâmica (com toda a sua reflexão sobre a consciência e a acção humanas em torno dos conceitos interiorizados de pecado, culpa e redenção) e a filosofia grega clássica (que inaugurou um campo de reflexão e conceptualização que tentava depurar o discurso sobre o estado de necessidade “material” de uma linguagem comum eivada de concepções simbólicas e metafóricas: e.g. Aristóteles, Política, II). No mundo ocidental, a dupla influência do cristianismo (que percorreu todo o caminho da dessacralização da Natureza) e da filosofia clássica, permitiu que a economia fosse emergindo como uma disciplina cada vez mais estruturada enquanto área de estudo da condição e da acção “profanas” (ou “mundanas”) do Homem; esse processo pode ser traçado através da linha que vai da primeira escolástica e da sua recuperação dos elementos de reflexão económica de Aristóteles até David Hume e Adam Smith, com quem surge já autonomizada da teologia, nomeadamente da teologia moral (é a proposta de Ernesto Screpanti e Stefano Zamagni em An Outline of the History of Economic Thought, Oxford: Clarendon Press, 1995, pp. 16-70). Esta autonomia – que nunca foi nem provavelmente poderá alguma vez ser independência – não deixou de ser contestada por alguns (p.e. R. H. Tawney, Religion and the Rise of Capitalism [1926], Harmondsworth: Penguin, 1990, pp. 271-281), mas possibilitou um indesmentível aperfeiçoamento conceptual na nossa tentativa de compreensão do estado humano de necessidade “material” e das opções de gestão que se propõem supri-lo.
4. Os dois “sistemas” entre a ontologia e a praxiologia:
A organização tripartida da ciência económica dada por Carl Menger (Investigations into the Method of the Social Sciences [1883], Apêndice IV, Grove City: Libertarian Press, 1996) – economia histórica, teórica e prática – tem obvias semelhanças com um “sistema religioso” como o cristão, no qual podemos encontrar, respectivamente, uma parte histórica (história sagrada ou da salvação), uma parte teórica (a da teologia propriamente dita, articulada em componentes como a cristologia e a eclesiologia) e uma parte prática (a moral). Em ambos os casos, as componentes teórica e prática dão lugar a uma ontologia e a uma praxiologia próprias: a primeira reflectida no esforço de definição de entidades como o agente humano ou das categorias que o condicionam, a segunda partindo da primeira e plasmada na tentativa de compreensão das causas e consequências de toda a acção humana. Esta semelhança pode dever-se a uma origem comum no campo da moral, a reflexão sobre os costumes (mores), que começou por ser campo comum dos “sistemas” religioso e económico na cultura europeia: de facto, as ciências que estudam o Homem, incluindo a economia, designaram-se inicialmente ciências morais, integrando-se num campo comum à teologia moral (cf. a classificação de Silvestre Pinheiro Ferreira, Prelecções Filosóficas, XIVss.). Assim, a economia, que partiu com Hume e Smith de uma exploração inicialmente histórica e moral, teve posteriormente necessidade de dotar-se de maior rigor teórico, conceptual, algo que se torna claro sobretudo com Carl Menger (Principles of Economics [1871], Grove City: Libertarian Press, 1994) – o enamoramento posterior de muitos economistas com a estatística e a matemática, inaugurando vias inspiradas pelo positivismo, como a econometria, foi um caminho alternativo hoje dominante e cujos resultados parecem menos satisfatórios. Mas não deixa de ser sintomático que mesmo a actual “síntese neoclássica”, obrigada a integrar as contribuições teóricas fundamentais de Menger, tenha chegado a definir o indivíduo como o agente económico fundamental (o seu sujeito moral...); tal facto dotou a teoria económica de pressupostos ontológicos e praxiológicos que reforçam o paralelo já observado entre a ciência económica e a teologia (cristã) da salvação.
5. Do individualismo moral ao individualismo metodológico (e vice-versa):
A reflexão teórica dentro do “sistema religioso” cristão, que marcou particularmente a área cultural euro-americana, articulou a sua rede conceptual ao nível do indivíduo; este é o sujeito moral, o agente central, no problema da salvação. Os agregados humanos, por mais que sejam valorizados nas escolhas individuais, não são o sujeito nem o objecto da salvação, a qual está destinada apenas às pessoas na sua individualidade; pode falar-se, assim, de um individualismo moral de base na forma como a teologia cristã em geral coloca o problema da salvação. Independentemente das divergências quanto à valorização das mediações, nomeadamente da própria Igreja entendida como realidade sacramental e institucional, o indivíduo aparece como o agente central. Esse facto, devidamente realçado, tornou-se depois, por exemplo na soteriologia de Locke, um imperativo moral: na Epistola de Tolerantia, Locke não só constata que a salvação é uma questão individual, mas opera o tour de force argumentativo de que isso implica, no campo da praxis, uma ampla margem de liberdade-responsabilidade dos indivíduos que lhes permita potenciarem a sua natureza de agentes morais. Algo de similar ocorreu na economia: esta focagem no indivíduo originou o chamado individualismo metodológico, isto é, um esforço de análise que tenta estender até ao nível do indivíduo o estudo do campo económico; tal focagem pressupõe o entendimento do indivíduo como o verdadeiro agente das escolhas que moldam a realidade económica, por mais que essas escolhas estejam condicionadas (ou mediadas) por agregados humanos. O tour de force argumentativo foi depois feito por economistas que concluíram que os indivíduos, sendo os agentes económicos fundamentais, deveriam estar suficientemente capacitados a exercer as suas escolhas individualmente, uma vez que estas potenciariam a boa gestão de recursos necessária a suprir o estado de necessidade material em que se encontram – passava-se do individualismo metodológico ao individualismo moral, fechando-se o círculo. É importante observar que as doutrinas (económicas e religiosas) que recusaram esta centralidade do indivíduo, tanto no plano moral como no plano metodológico, tiveram de considerar os agregados humanos (os colectivos) os seus verdadeiros sujeitos morais ou objectos de estudo; e isto é válido tanto para as doutrinas que trataram esses colectivos como entidades objectivas (o marxismo p.e.) como para aquelas que as entenderam como realidades morais nas quais os indivíduos deveriam convergir (o “socialismo cristão” de Tawney p.e.) ou ainda as tendências na economia que lidam preferencialmente com os chamados agregados estatísticos “macro-económicos” e que ignoram toda a problemática praxiológica (o keynesianismo p.e.). Deste modo, tanto no “sistema religioso” como no “sistema económico”, há em comum esta opção fundamental entre valorização e desvalorização do indivíduo, a qual tem implicações metodológicas e morais aparentemente interligadas.
[NOTA 12.02.2002: O 6.º ponto, que quis incluir e que não tive tempo de deixar amadurecer, poderia ser: O problema da “ordem”, isto é, do resultado da acção humana. Assim, em ambos os “sistemas”, o sujeito faz escolhas que, sendo sempre condicionadas, podem ser mais ou menos potenciadas na proporção inversa à da interferência de “agregados humanos” dotados de mecanismos “coercivos”. Em ambos, coloca-se, pois, o problema da “ordem” decorrente das múltiplas escolhas individuais, que é o mesmo que dizer o problema de saber se a interacção das escolhas individuais tende à harmonia espontânea (e como?) ou se necessita de ser “regulada” (e em que medida) por mecanismos coercivos. Este é um problema moral e metodológico central no estudo dos “sistemas” religioso (ou soteriológico) e económico.]