Em torno de Gál. 5:1
O dito o poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente, pronunciado por Lord Acton na época em que tentou mover a sua influência em Roma contra a proclamação da infalibilidade papal, teve uma origem religiosa e uma aplicação política significativas.
Em termos mundanos, poder é essencialmente capacidade de coagir; é dessa capacidade que falamos quando dizemos poder, quer seja o poder político ou qualquer outra forma de poder, necessariamente “social”, mesmo o poder paternal do direito civil.
Isto é essencialmente diferente das formas de persuasão utilizadas na retórica como Aristóteles a ensinou, mesmo em assembleias deliberativas ou tribunais, ou na pregação como Jesus a modelou na proclamação do Evangelho – nos âmbitos da retórica e da pregação, tenta-se convencer, não coagir.
Onde a coerção começa já acabou a persuasão. Retórica e pregação são pois distintos do poder e, provavelmente, seus contrários. Ora, a razão de no dictum de Acton estar pressuposta a natureza corruptora do poder não é geralmente associada à coerção como natureza do poder, mas a uma acção misteriosa que o seu exercício alegadamente teria sobre o discernimento e as rectas intenções de quem o detém. Não creio dever ser esse para um cristão o entendimento da frase de Acton.
O que torna o poder moralmente degradado e/ou degradante – ou, mais correctamente, amoral, senão imoral –, independentemente do comportamento daquele que o detém, é que ele é essencialmente o exercício de coerção e é esta que é imoral. É que um dos traços morais marcantes do evangelho de Jesus Cristo – e o único que tem um real significado social e político – é a abstenção de coerção. Jesus não coage; convence pelo que diz ou realiza ou deixa ver de si mesmo.
O Reino anunciado vem ao mundo porque as pessoas se convertem ao seu evangelho, o aceitam por decisão interior (a decisão cristã de Lutero), selando uma aliança com o Pai mantida pelo vínculo do Espírito Santo – e agindo em consequência, nomeadamente abstendo-se de coagir o próximo. É essa abstenção de exercício de coerção sobre os seus semelhantes que, no limite, levou Jesus à cruz. Ele, que era Deus, para anunciar o Reino do Pai como os seus irmãos o deveriam viver auxiliados pelo Espírito, absteve-se de usar uma parcela que fosse da omnipotência divina – era a única forma de, nessa divina e humana demonstração do Reino, não haver qualquer exercício de coerção da sua parte.
E o Evangelho, essa mensagem proclamada e vivida que é a chave da Salvação sob a Nova Aliança, é o modelo moral para os cristãos. Ninguém se salva pelo exercício da coerção sobre outros nem pela coerção que outros possam exercer sobre ele. É por isso que, de um ponto de partida cristão, o poder corrompe – porque coagir e ser coagido não são as experiências humanas em que o Reino se manifesta. A corrupção vem daí: é imoral o que obsta ao que vem de Deus e conduz à Salvação.
O poder (kratos em grego), sinónimo pois de coerção, não é próprio do Reino de Deus e essa é uma das razões pelas quais Jesus disse que aquele não era “deste mundo”. Porque o poder “deste mundo”, de natureza social e política, requer realmente a coerção. Por contraste, a acracia – se assim nos podemos expressar – é um traço essencial do Reino anunciado no Evangelho para ser trazido ao mundo pelos cristãos. E se o Reino vive na Igreja de Cristo, esta terá, em termos mundanos, de ser uma realidade acrática, na qual ninguém pode exercer coerção nem ser objecto de coerção. Nesses termos, dificilmente ela poderá ser algo mais do que a “Igreja invisível” e as presenças sacramentais de Cristo pelo Espírito Santo na oração, na eucaristia e no baptismo.
Assim se pode entender o que é a liberdade cristã «para que Cristo nos libertou» aqui referida por Paulo. Essa liberdade é a experiência do Reino. Sou livre por não coagir nem ser coagido – porque só assim posso ser um sujeito do «povo de sacerdotes» fundado por Jesus a partir daqueles que ele próprio, presencialmente, trouxe à conversão, até aos que hoje se convertem.
Este eixo acrático da moral evangélica tem de guiar a leitura dos escritos de Paulo no que se refere às relações entre cristãos e entre estes e os não cristãos ou qualquer realidade mundana que exerce poder. Os escritos de Paulo não devem ser interpretados nem contrariando nem sobrepondo-se ao que se infere do próprio Evangelho. Os cristãos não se podem coagir uns aos outros sem suspenderem o Reino dentro de si mesmos e nas suas relações. A mesma suspensão ocorre se coagirem não cristãos.
Os membros do povo de sacerdotes são chamados a dar testemunho do Reino, mesmo quando são alvo da coerção de outros – no limite, isso pode implicar o martírio (que é sempre decorrente de decisões coercivas de outrem e não, em si mesmo, uma opção moral do cristão). Cair no jugo da servidão «de que Cristo nos libertou» é participar em actos coercivos ou ser beneficiário de actos coercivos não directamente cometidos por si mesmo.
Não se opor por meios coercivos aos poderes mundanos não significa que se aceite a coerção desses poderes ou que eles tenham lugar no Reino e na Igreja. Significa que nos abstemos de colaborar na praxis mundana da coerção. Porque o Reino não vem pelos poderes deste mundo e estes são a servidão que obsta à liberdade com que nos mantemos sob o sumo sacerdócio de Cristo, nosso único Mediador. É por isso que a ideia de que o Reino tenha uma natureza social ou política só pode ser heresia e apostasia.
O mesmo se pode dizer das ideias ou predisposições que de algum modo o aproximem da realização de projectos que se servem ou sujeitam à natureza coerciva dos poderes deste mundo – nestes casos, estaríamos perante uma corrupção da nossa vivência do Evangelho nos termos em que aqui entendemos a palavra corrupção na frase de Acton.