terça-feira, julho 12, 2005

O "cavaleiro da fé" individualista e o "herói trágico" altruísta



«Examinemos um pouco mais de perto a tribulação e a angústia contidas no paradoxo da fé. O herói trágico renuncia a si mesmo para exprimir o geral; o cavaleiro da fé renuncia ao geral para se converter em Indivíduo. Já o disse, tudo depende da atitude que se adopte. Se supomos relativamente fácil ser Indivíduo, pode-se estar seguro de que não se é cavaleiro da fé: porque os pássaros em liberdade e os génios vagabundos não são os homens da fé. Pelo contrário, o cavaleiro da fé sabe que é magnífico pertencer ao geral. Sabe que é belo e benéfico ser o Indivíduo que se traduz no geral e que, por assim dizer, dá de si próprio uma edição apurada, elegante, o mais possível correcta, compreensível a todos; sabe quanto é reconfortante tornar-se compreensível a si próprio no geral, de forma a compreender este, e que todo o Indivíduo que o compreenda a ele compreende o geral, ambos usufruindo da alegria que a segurança do geral justifica. Sabe quanto é belo ter nascido como Indivíduo que tem no geral a sua pátria, a sua acolhedora casa, sempre pronta a recebê-lo todas as vezes que lá queira viver. Mas sabe, ao mesmo tempo, que acima desse domínio, serpenteia um caminho solitário, estreito e escarpado; sabe quanto é terrível ter nascido isolado, fora do geral, caminhar sem encontrar um único companheiro de viagem. Sabe perfeitamente onde se encontra e como se comporta em relação aos homens. Para eles, é louco e não pode ser compreendido por ninguém. E no entanto, louco é o menos que se pode dizer. Se não se olha para ele deste ângulo, então considera-se hipócrita, e tanto mais cruelmente quanto mais alto trepou pelo escarpado caminho. [...].

Só o Indivíduo pode decidir se está verdadeiramente em crise ou se é um cavaleiro da fé. No entanto, o paradoxo permite mostrar alguns caracteres que quem não se ache nesta situação pode também compreender. O verdadeiro cavaleiro da fé encontra-se sempre no absoluto isolamento; o falso cavaleiro é sectário, quer dizer que tenta sair da estreita vereda do paradoxo para se tornar um herói trágico barato. O herói trágico exprime o geral e sacrifica-se por ele. Em vez de assim actuar, o polichinelo sectário possui um teatro privado, alguns bons amigos e companheiros que representam o geral tão bem como os assessores de A Tabaqueira de Ouro representam a justiça. O cavaleiro da fé, pelo contrário, é o paradoxo, é o Indivíduo, absoluta e unicamente o Indivíduo, sem conexões nem considerações. É essa a sua terrível situação, que o débil sectário não pode suportar. Em lugar de tirar como conclusão o reconhecer a sua incapacidade para fazer o que é grande e confessá-lo sinceramente, o que não posso deixar de aprovar pois é a minha atitude, o pobre diabo supõe que juntando-se a alguns dos semelhantes poderá alcançar o termo do seu intento. Mas de modo algum terá êxito, pois o mundo do espírito não se deixa enganar. Uma dezena de sectários dão-se as mãos; não compreendem absolutamente nada acerca das crises de solitude que esperam o cavaleiro da fé e às quais não pode subtrair-se porque seria ainda mais terrível abrir caminho com demasiada audácia. Os sectários ensurdecem-se uns aos outros fazendo grande algazarra, mantêm afastada a angústia graças aos seus gritos, e este conjunto de gente ululante de medo supõe poder assaltar o céu e trilhar o caminho do cavaleiro da fé; mas este, na solidão do universo, jamais ouve uma voz humana; avança sozinho com a sua terrível responsabilidade.

O cavaleiro da fé já não encontra outro apoio senão em si próprio; sofre por não poder fazer-se compreender, mas não sente nenhuma vã necessidade de guiar os outros. A sua dor é a sua segurança; ignora o vão desejo, a sua alma é demasiado séria para isso. O falso cavaleiro atraiçoa-se por esse domínio adquirido num momento. Ele não compreende que se outro Indivíduo vai seguir o mesmo caminho deve tornar-se em Indivíduo exactamente da mesma maneira, sem ter, por consequência, necessidade de directivas de ninguém, e, sobretudo, de quem as pretenda impor. Aqui de novo ele sai da senda do paradoxo, não pode suportar o martírio da incompreensão; prefere, o que é muito cómodo, impor-se à admiração do mundo mostrando a sua capacidade de domínio. O verdadeiro cavaleiro da fé é uma testemunha, nunca um mestre; nisso reside a sua profunda humanidade muito mais significativa do que essa frívola participação na felicidade ou na desgraça de outrém, honrada com o nome de simpatia, quando afinal não passa de pura vaidade. Quer-se ser simplesmente testemunha: confessa-se implicitamente que ninguém, nem mesmo o último dos homens, tem necessidade de compaixão humana nem de mostrar o seu aviltamento para que um outro faça disso um pedestal. Mas como esta testemunha não conseguiu facilmente o que ganhou, também não o vende por baixo preço e não tem a baixeza de aceitar a admiração dos homens para lhes oferecer, em troca, o seu desprezo; sabe que a verdadeira grandeza é, igualmente, acessível a todos”.

(Soren Kierkegaard, Temor e Tremor, Guimarães Editores, pp. 98 e 102-103.)

O CRISTÃO INDIVIDUALISTA