A tradução completa da Bíblia em português (1791),
do Padre António Pereira de Figueiredo, o grande
teórico eclesiológico do regalismo português.
§20
[Em direcção ao regalismo] A mudança mais relevante do período de união
dinástica com Espanha (a partir de 1580) foi a perda de influência portuguesa
em Roma, que viria a ter consequências não só na secundarização do papel do
padroado português do Oriente (sobretudo com a criação, em 1622, da Propaganda
Fide), mas também na difícil regularização, depois da restauração de uma
monarquia separada (1640), da investidura de bispos e de outros dignitários
eclesiásticos. A Santa Sé só reconheceu a independência portuguesa em 1670,
após o reconhecimento espanhol e o fim da guerra da restauração (1640-1668);
durante esse período, as novas nomeações para cargos eclesiásticos que
requeriam confirmação papal – nomeadamente de bispos – ficaram congeladas,
criando uma difícil situação que levou D. João IV, em 1649, a reunir uma
comissão de teólogos que chegou a considerar legítima a sagração de bispos em
Portugal sem recurso ao papa (HRP,
II, 159). Foi ainda sintomático que a proposta papal de poder investir bispos
sem menção à sua apresentação pela coroa portuguesa também nunca tenha sido
aceite por D. Afonso VI e pelo futuro D. Pedro II, que, tal como o seu pai,
percebiam que essa solução colocaria em questão o princípio do padroado régio.
Aquando da regularização das relações com a Santa Sé, a coroa pretendeu alterar
a fórmula de confirmação papal das nomeações episcopais de ad suplicationem para ad
nominationem seu presentationem, o que só foi plenamente conseguido em
1740, já no reinado de D. João V. Graças ao ouro brasileiro, e continuando a
orientação do reinado anterior, este monarca contou com recursos para poder
reatar a política manuelina de grandiosas embaixadas a Roma, que já haviam
valido a Portugal a aquisição de um cardeal
da coroa (1671) e valeram depois a elevação à mesma dignidade do arcebispo
de Lisboa (1737), a elevação da capela real a basílica patriarcal (1716) e ao
rei o título de fidelíssimo (1748).
Esta reconquista de influência junto da Santa Sé fez-se sob um pano de fundo em
que conviveram duas tendências aparentemente contraditórias. Na forma como foi
aceite a bula Unigenitus (1713) que
condenava o jansenismo e como, em 1717, o senado da Universidade de Coimbra
declarou que «o pontífice romano […] não erra nem pode errar» era evidente a
tendência para continuar a reconhecer ao papado autoridade em questões de
definição da fé em que assentava a religião civil; simultaneamente, manteve-se
a tendência regalista anterior, patente no facto de desde 1669 haver o
propósito de restaurar plenamente o beneplácito régio (em 1728, durante um
conflito com Roma que durou até 1731, um decreto real declarou-o em vigor sobre
qualquer «bula, breve, graça ou despacho do papa, ou de seus tribunais ou
ministros») e da acção dos núncios ter sido cerceada e sujeita à fiscalização e
recurso do Desembargo do Paço (1676). A política eclesiástica do marquês de Pombal,
sob o reinado de D. José I, pautou-se também por esta dupla tendência e, em
continuidade com ela, definiu o que seria, em geral, a orientação mantida até
1911.
§21 [A conclusão do edifício regalista] A deliberada política agressiva do marquês de Pombal para com a Santa Sé, que motivou um corte de relações a partir de 1760, pretendeu exibir a determinação da coroa de completar a estatização da Igreja nos planos simbólico e das relações externas; esse desiderato ficou patente no restabelecimento do beneplácito régio (de facto em 1760, de jure pela lei de 6 de Maio de 1765), depois estendido a todas as pastorais episcopais (1768). A intervenção dos núncios apostólicos na Igreja portuguesa foi anulada em 1765 com a proibição do exercício de medidas disciplinares e da emissão de censuras sobre clérigos portugueses sem apoio da coroa, o que foi confirmado em 1779. Às ordens religiosas, mesmo no caso da Congregação do Oratório, foram dados sinais de que deviam conformar-se ao ambiente regalista. O desfavorecimento e posterior expulsão da Companhia de Jesus (Setembro de 1759) deveu-se não só à oposição desta a interesses da coroa na América do Sul, mas também ao facto de se tratar de uma ordem com voto de obediência muito vincado ao papa – o que contribuiu para passar a ser encarada como um elemento disfuncional numa igreja nacional, dada, para mais, a sua relevante obra docente (isso permitiu, aliás, que, de um ponto de vista simbólico, Pombal elegesse os Jesuítas como representantes de tudo o que se opunha à sua concepção de Estado e de Igreja). A perseguição movida à Jacobeia, na pessoa do bispo de Coimbra (Miguel da Anunciação), em 1768-69, deveu-se não tanto às doutrinas espiritualistas e rigoristas do movimento, mas ao seu pendor anti-regalista. A mesma lógica presidiu à retirada de autonomia à Inquisição: em 1761, o inquisidor geral José de Bragança foi destituído por censurar o livro regalista De potestate regia, de João Inácio Ferreira Souto, passando desde então o tribunal a estar sujeito a uma intervenção crescente da coroa que, pelos estatutos de 1774, o desvinculou inteiramente de Roma e o tornou uma instituição régia apenas decorativa (a supressão da discriminação dos cristãos-novos em 1773 fez desaparecer os processos, entretanto tornados públicos). A instituição da Real Mesa Censória (5 de Abril de 1768) e a aceitação por Roma da não obrigatoriedade do Índex em Portugal esvaziaram as funções da Inquisição e tornaram completamente secular o critério da censura prévia das publicações pela coroa. A extensão aos clérigos (em 1762) do imposto da décima de 1654 e a sua sujeição aos tribunais régios em todas as matérias temporais (1769) pretenderam vincar a drástica limitação do foro eclesiástico que a coroa procurara há séculos realizar. Por sua vez, com a lei da boa razão (1769), os tribunais régios deixaram de aplicar o direito canónico, que deixou, assim, de ser direito subsidiário na justiça civil portuguesa [Sobre outras disposições importantes desta lei, que estabeleceu a supremacia da Casa da Suplicação na interpretação das leis, ver António Luís de Seabra, A Propriedade: Filosofia do Direito para Servir de Introdução ao Comentário Sobre a Lei dos Forais, Coimbra: Imprensa da Universidade, 1850, p. 251ss]. Aquando do reatamento das relações com Roma, em 1770, tanto a coroa como a Santa Sé davam já como adquiridas todas estas medidas (HRP, II, 176). Com o início do reinado de D. Maria I e a queda de Pombal em 1777 deu-se uma mudança parcial de pessoal político e apenas o reconhecimento do direito de confirmação pela Santa Sé dos benefícios providos pela coroa e de participação na censura de publicações (concordatas de 1778 e 1780).
§22 [A universidade e a secularização cultural] A permanência da guinada regalista da segunda metade do século XVIII foi evidente em determinadas características do ensino ministrado na universidade de Coimbra, que perduraram da reforma de 1772 até 1911. A universidade portuguesa, nascida de um acordo entre o rei e o estado eclesiástico em 1288 (aprovado pelo papa em 1290), embora dotada de foro que a isentava da interferência dos concelhos onde esteve sedeada (Lisboa e Coimbra, até se estabelecer definitivamente nas margens do Mondego em 1537), contou sempre com tutela e patrocínio régios; na estrutura dos seus estudos gerais, orientada para a formação de clérigos (teologia), de juristas e de canonistas, estava subentendida a complementaridade dos direitos civil e canónico e a unidade funcional da Igreja e da ordem civil convergente na coroa. Até ao século XV, grande parte dos estudantes portugueses continuaram, no entanto, a preferir as universidades estrangeiras (nomeadamente Bolonha), devendo-se a D. João III um período de algum prestígio no século XVI, que viu nascer a escolástica conimbricense, a que se seguiu o abatimento em que a encontrará a reforma pombalina (HDP, 428ss). Essa crise foi coincidente com a manifestação de uma desadequação crescente entre o projecto político da coroa e o projecto de sociedade cristã expresso na reforma tridentina da Igreja católica romana; a coincidência dos dois projectos, que fora a utopia político-eclesiástica do século XVI e de que a escolástica quinhentista e seiscentista era a suprema elaboração doutrinal, revelou-se desadequada às cada vez mais fortes expectativas secularizantes de parte das elites. A reforma dos estudos em 1772, com a introdução de novas disciplinas ligadas às tendências experimentalistas da filosofia e da ciência modernas, pretendeu estabelecer um novo pacto entre as elites do País, que retirava de facto ao clero a supremacia ideológica na justificação e reprodução cultural da unidade política da sociedade, questionando, a prazo, o comprometimento da coroa (e da universidade) com o projecto tridentino. É neste contexto que se afirmam as doutrinas seculares do despotismo esclarecido e depois, em debate e reacção com estas, as formulações “liberais” e “constitucionais” de entendimento da função do poder civil [É o que está patente na polémica de c.1789 entre o “constitucional” António Ribeiro dos Santos e o “despotista” Pascoal José de Melo Freire a propósito da reforma projectada das normas de direito público das Ordenações (ver António Manuel Hespanha, «O constitucionalismo monárquico português – breve síntese»]. Na universidade, a formação teológica e canónica seguiu as obras do tradutor da Bíblia e teórico regalista setecentista António Pereira de Figueiredo (Doctrina Veteris Eclesiae, 1765) e do desembargador e procurador da coroa José de Seabra da Silva (Dedução cronológica e analítica, 1768), que tinham antecedentes em Gabriel Pereira de Castro (Tractatus de manu regia, 1625) e terão continuadores em, nomeadamente, Bernardino Joaquim da Silva Carneiro (Elementos de direito eclesiástico português, 1863). Embora alguns percursos individuais – como o da “ilustração católica” de Teodoro de Almeida – manifestassem a plena participação de clérigos nestas mutações culturais, entrara em decadência o papel orgânico das ordens religiosas na competição pela formação das elites para a gestão da unidade do reino. No período de 1807 a 1820, as invasões francesas, a guerra peninsular e a desestruturação do poder da coroa (com a retirada da corte para o Brasil) afectarão gravemente o estado das ordens religiosas, cuja reforma era já sentida e tentada em profundidade desde que o futuro D. João VI assumira a regência de facto em 1792.
§23 [Regalismo e pluralização política das elites] A partir da segunda metade do século XVIII, o papel da Igreja foi reequacionado numa vertente nacional e cívico-pastoral que passou a valorizar sobretudo a missão do clero secular porque a actividade docente e edificadora da religião monástica se revelava cada vez mais desfasada das expectativas de elites crescentemente abertas a uma vida de realização e melhoria no século; a própria afirmação política da coroa como Estado – agência devotada à segurança e bem-estar seculares dos indivíduos –, já explicitada sob Pombal, era evidência dessa lenta deriva secularizante das elites que tenderam a apoiar-se na acção racionalizadora do poder central como uma autêntica força secular toda-poderosa. Esta mutação criará condições para que a coincidência coerciva de crenças privadas e de crenças públicas seja abandonada de facto (o que a autorização de capelanias e cemitérios estrangeiros e a tolerância para com as lojas maçónicas começou a indiciar no século XVIII) e depois de jure, com a instauração do liberalismo (HRP, III, 419ss). Grosso modo, entre 1750 e 1850, começou a desenhar-se uma liberalização das crenças privadas sob o pano de fundo de um catolicismo que não podia ser abandonado como religião civil – quer porque a Igreja institucional se tornara parte fundamental e eficiente do corpo administrativo da coroa/Estado quer porque o enquadramento simbólico que fornecia ao conjunto da sociedade, sendo considerado útil, não tinha alternativa. Por essa razão, as lutas civis entre absolutistas, liberais e democratas (1817-1851), que foram o irromper de uma intervenção auto-organizada das elites nas decisões políticas gerais, não questionaram o arranjo regalista, mesmo quando aquela intervenção passou a processar-se num quadro estabilizado de selecção eleitoral não dependente de movimentos insurreccionais ou dos favores do monarca (a partir de 1852). A religião civil teve, no entanto, de ser adaptada à circunstância de instauração de liberdades civis universais (consciência, imprensa, associação), pelo que a fácil abolição da Inquisição em 1821 foi pacífica. Já o destino das ordens religiosas jogou-se num período de guerra civil (1832-1834), no término do qual a abolição pura e simples acabou por ser também a medida mais fácil (tendo em conta a necessidade de reforma já sentida e os poucos incentivos para a empreender entre os anti-absolutistas vitoriosos); mas esta medida drástica não deixava de estar em consonância com o ímpeto secularizante e nacionalizador do regalismo, porquanto assim se enfraqueciam as ligações da Igreja portuguesa à tradição monástica e à sua inserção numa cultura religiosa transnacional. A reacção epidérmica das elites políticas ao ultramontanismo na segunda metade de Oitocentos explica-se pela natural adopção deste ímpeto regalista, que se tornara parte da cultura política dominante.
§24 [A religião no quadro da Igreja constitucional] À normalização política de meados do século XIX, feita sob a Carta Constitucional de 1826 (outorgada por D. Pedro IV, defendida por D. Maria II e democratizada em 1852), correspondeu uma normalização religiosa: entraram em vigor o novo enquadramento jurídico-político da Igreja e a concordata de 1848 (que encerrou o cisma no clero secular motivado pelos diferentes alinhamentos políticos dos seus membros). Sob mudanças aparentes ou de nomenclatura, o edifício regalista não só permaneceu intacto como se consolidou: além de se manter a representação episcopal nas Cortes (Câmara dos Pares), o governo passou a prover em nome do rei todos os benefícios eclesiásticos (sendo abolidos os padroados privados). De acordo com o Código Administrativo de 1842 [Art.º 108 §8.º] (e as suas revisões seguintes) [na verdade, desde o decreto n.º 23 de 16 de Maio de 1832], os governadores civis ficaram incumbidos de vigiar o exercício da autoridade eclesiástica (tornando-se superiores hierárquicos dos párocos em concorrência com as reduzidas competências pastorais dos bispos) e de superintender todos os estabelecimentos de piedade e beneficência (o que incluía confrarias, Misericórdias e respectivos hospitais) [idem, Art.º 220 n.º 2 do Código Administrativo de 1886]. As misericórdias mantiveram-se as «pedras basilares do sistema nacional de beneficência», levando o processo de desamortização do seu património não necessário às actividades beneficentes (ordenado pela lei de 22 de Junho de 1866) a uma mudança da sua presença na sociedade, patente na fundação de «cozinhas económicas, balneários públicos, albergues nocturnos, apoios diversos ao ensino primário» e até caixas económicas em Viana do Castelo e Viseu, onde se mantiveram até 1968 (Lopes, «As misericórdias», pp. 86 e 90). As atribuições das autoridades administrativas (tuteladas pelo ministério do reino) eram as mesmas antes detidas pela Mesa da Consciência e Ordens, uma parte das quais, no entanto – as pastorais e canónicas –, fora apropriada pelo ministério da justiça (“e negócios eclesiásticos”). Embora muito moderados em relação ao disposto nas antigas Ordenações, os Códigos Penais de 1852 e 1886 mantiveram a penalização de qualquer ataque às doutrinas da “religião do reino” («por factos ou palavras, ou por escrito publicado, ou por qualquer meio de publicação»), a proibição de actos de culto ou de proselitismo que lhe fossem contrários e a condenação da dissidência da Igreja estabelecida («apostatando, ou renunciando a ela publicamente») com a perda de direitos políticos (não dos civis). Estas disposições penais devem ser vistas como sobrevivências meramente formais da instituição do catolicismo como religião civil, já que a prática administrativa e a jurisprudência foram claramente no sentido da tolerância – a dissidência crescente do catolicismo não despoletou acusações dos procuradores da coroa e organizou-se mesmo em associações (caso do laicismo republicano e livre-pensador) ou até em comunidades religiosas (caso dos judeus e dos protestantes) a partir da década de 1860; da mesma forma, os actos de culto e proselitismo da pequena minoria protestante rapidamente foram tolerados após alguns conflitos dirimidos judicialmente (HRP, III, 447ss). Às disposições penais sobrepôs-se, portanto, a garantia do artigo 145.º-§4.º da Carta Constitucional de que «ninguém pode ser perseguido por motivo de religião», como demonstraram as normas do casamento civil no Código Civil de 1867 (cf. Art.º 1072ss) e a lei do registo civil de 1878, que claramente reconheciam e pretendiam servir os súbditos portugueses que, nas suas crenças privadas, não professavam as doutrinas da Igreja estabelecida. O artigo 6.º da Carta, que considerava como “religião do reino” o catolicismo e autorizava aos estrangeiros cultos privados e templos discretos, era realmente omisso quanto à relação dos súbditos portugueses com a Igreja estabelecida; a ideia de que todos eram ipso facto membros dessa Igreja – algo que o texto não dizia – era uma pressuposição que a realidade e a forma como as autoridades a geriram se encarregaram de desmentir.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
[HDP] SILVA, Nuno J. Espinosa Gomes da – História do Direito Português – Fontes de Direito [4.ª ed. revista e actualizada, 720 p.], Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2006.
[HRP] AZEVEDO, Carlos Moreira (dir.) – História Religiosa de Portugal, vol. I Formação e limites da Cristandade (coord. Ana Maria C. M. Jorge e Ana Maria S. A. Rodrigues, 544 p.), vol. II Humanismos e reformas (coord. João Francisco Marques e António Camões Gouveia, 700 p.), vol. III Religião e secularização (coord. António Matos Ferreira e Manuel Clemente, 584 p.), Lisboa: Círculo de Leitores, 2000 (vols. I e II) e 2002 (vol. III).
LOPES, Maria Antónia, «As misericórdias de D. José ao final do século XX» in José Pedro Paiva (coord.), Portugaliae Monumenta Misericordiarum, Lisboa: C.E.H.R./U.C.P. e União das Misericórdias Portuguesas, s.d., vol. 1, pp. 79-117.