Em 1944, em The Road to Serfdom, Friedrich A. von Hayek defendeu a tese de que uma sociedade que caminhasse no “meio da estrada”, entre as faixas do liberalismo e do socialismo, estava a caminho do totalitarismo. Dessa forma, Hayek pretendia atacar a consolidação do Estado Providência, que o fim da guerra, de facto, traria. A argumentação era válida para alertar a opinião pública para problemas potenciais criados pelo abandono do liberalismo económico e jurídico – e Hayek é extremamente convincente ao apontar esse abandono como a causa da deriva da Alemanha, desde o fim do século XIX, para um socialismo de Estado profundamente opressivo e agressivo – mas pecava por excesso.
Embora seja um hayekiano inveterado, julgo que o grande professor se enganou profundamente na mais panfletária das suas obras. Hayek tomou a nuvem por Juno e confundiu uma possibilidade com uma inevitabilidade. O Estado Providência, com a sua economia mista e a sua ruína de Estado de Direito, sobreviveu ao desvario nazi e a outros autoritarismos mais soft-core, e tem-se mantido vivo há um século. Em países como os Estados Unidos e a Grã-Bretanha (e em mais uma meia dúzia de monarquias europeias), o Estado Providência herdou sólidas tradições constitucionais que funcionaram como diques na altura da enchente colectivista e puseram a salvo algumas instituições que evitaram a barbárie.
A pax americana, que tutelou o hemisfério ocidental desde 1945, permitiu precisamente que, nessa parte do mundo, o Estado Providência se mantivesse nesses limites civilizados e o debate político se centrasse em grande medida na negociação entre partidos e grupos de interesse sobre o recorte do “monstro social” e a repartição por capelinhas do rendimento nacional por ele confiscado. O senso comum, sobretudo entre os mais conservadores, tem gerido, assim, o Estado Providência numa marcha lenta que, graças aos empurrões das inovações tecnológicas, permitiu até a manutenção de algum crescimento económico. Nos anos 70, aquele emperrou, com a “estagflação”, mas o sistema revelou a capacidade de tolerar algumas reformas de contenção, que permitiram ao monstro voltar a deslizar pesadamente. E se, por um lado, o peso da despesa pública cresce um passo de pardal a cada volta que a Terra dá ao Sol, por outro, intensificam-se as trocas comerciais e as inovações tecnológicas continuam a permitir quedas de custos de produção.
O que é interessante observar-se é que, com este maravilhoso mundo do Estado providencial civilizado, estão descontentes essencialmente dois tipos de pessoas: os socialistas radicais e os liberais clássicos. E uns e outros são minorias irrelevantíssimas, mesmo no caso dos segundos num país como os Estados Unidos, com todos os seus recursos, institutos, think tanks e publicações. Diferente destes, ignorando-os completamente, a grande maioria está bem com o Estado Providência e, genuinamente, se vê problemas, acredita que, sem ele, ainda seriam piores. Não é ele, afinal, providencial? Com todos os seus defeitos, não é ele uma tremenda conquista histórica?
As pessoas são seres religiosos. E acreditam. O Estado Providência é a crença política mais forte da nossa época e continuará a existir e a superar as suas crises enquanto as pessoas acreditarem. Trata-se de um arranjo que não aniquila completamente o mercado e, portando, pode dosear todo o potencial de liberdade e de eficácia daquele. A isto, como suprema construção híbrida, junta ele a ilusão protectora do despotismo, fundado no amor desvirtuado e interessado das massas humanas. O Estado Providência conquistou-as ao velho Deus transcendente que exigia um amor gratuito e diz-lhes, para seu grande conforto, “pagas-me e pagas-me bem, mas eu sou tão forte e omnipotente, que tu estás inquestionavelmente protegido!”
Podem alguns liberais ansiosos contrapor que o argumento de Hayek é válido num tempo muito mais longo do que a sua obra sugeria; e que o provável colapso financeiro da Segurança Social, atrelado a uma espiral inflacionista e a um conflito político entre gerações (ou entre activos e inactivos), pode forçar o Estado Providência a revelar a sua face final. Pode ser. Mas, para já, estamos num labirinto que Hayek não previu, mas que, em termos históricos, mais se assemelha a um interminável déjà vu a que a propensão humana para o meio termo e o sincretismo há muito habituou os mais atentos.
Fevereiro de 2005 (publicado no semanário Domingo Liberal)