segunda-feira, maio 21, 2007
A história económica na obra de Jorge Borges de Macedo
[Comunicação de 30.03.2006 no Gabinete de Estudos Olissiponenses (Beau Séjour, Benfica), integrada no ciclo de eventos "Jorge Borges de Macedo, 10 anos depois (1996-2006)", organizado pela Câmara Municipal de Lisboa. Publicado na revista Negócios Estrangeiros, n.º 11.3 (Agosto 2007), pp. 21-26 - Para a versão publicada, consultar aqui.]
O contributo de Jorge Borges de Macedo (1921-1996) para a história económica é aqui equacionado a partir das três obras principais que nos legou nessa área: A Situação Económica no Tempo de Pombal: Alguns Aspectos (1951), O Bloqueio Continental: Economia e Guerra Peninsular (1962) e Problemas de História da Indústria Portuguesa no Século XVIII (1963). Nestas obras, tentarei descortinar o seu contributo próprio para a historiografia portuguesa e aquilo que julgo ser o seu “programa metodológico”, o qual, por sua vez, permite tecer algumas considerações sobre o legado científico do autor.
Na minha leitura, a história económica tem, na obra de Borges de Macedo, um papel de precoce possibilitadora daquilo que o historiador definirá mais tarde como "formalização concreta". Como tentarei defender, Macedo não só quis evitar uma história politicamente comprometida como, depois, fugiu sempre a adoptar qualquer teorização a priori, fazendo essas opções de fundo com a sua opção inicial pela história económica. Recorde-se que, nas primeiras décadas do século XX, a historiografia portuguesa estava muito marcada por leituras acentuadamente ideológicas do passado, que reflectiam tanto o afrontamento político extremado da época quanto o facto de não existir uma historiografia académica desenvolvida e mais assente na investigação profissionalizada. Encontram-se ecos dessa realidade nas referências de Macedo, em A Situação Económica, às divergentes leituras sobre a figura de Sebastião José de Carvalho e Melo, prejudicadas, segundo ele, pela projecção no passado de preconceitos presentes e pela superficialidade da investigação.
Apesar do nosso historiador ter sido influenciado (e formado) pelas concepções correntes na época em que estudou na Faculdade de Letras de Lisboa, a verdade é que o seu primeiro livro já testemunha um exercício de procura de um caminho próprio. Assim, sendo verdade que os instrumentos analíticos do marxismo tinham, na década de quarenta do século XX (em que Macedo se formou), amplo prestígio nos meios intelectual e académico, estranho seria que o então jovem historiador lhes tivesse sido imune. O marxismo era já visto por grande parte da intelectualidade e dos universitários como o digno sucessor (até porque, em grande medida, continuador) do positivismo; a implícita epistemologia objectivista deste último e os seus (pre)conceitos holísticos eram apropriados pelo marxismo, mas com a vantagem de serem articulados numa “filosofia da história” mais elaborada e de maior potencial explicativo. Esta influência, que o próprio Macedo não teve problemas em reconhecer no prefácio de 1981 à reedição de A Situação Económica, não deve, no entanto, conduzir a conclusões precipitadas. É claro no texto original de A Situação Económica que a obra resulta pouco ou nada marcada pelo vocabulário marxista e pode, também por essa razão, ser lida nos nossos dias sem a impressão de estar datada – ao contrário do que acontece com trabalhos posteriores de outros historiadores marcados por aquele vocabulário.
Ora, isto é tanto mais interessante quanto Macedo decidiu enveredar pela vertente económica da história, o que o poderia ter levado a uma escrita menos distanciada do vocabulário marxista. Acontece, no entanto, que a sua intenção declarada em 1945 (publicada em 1951) de evitar resolver os problemas historiográficos através da “redução da sociedade a um esquema”, levava-o a considerar que a «explicação concreta de uma sociedade só pode ser dada com razões também concretas, inscritas no próprio meio que só a sua análise permite encontrar». E ia mais longe: «De nada serve falar em abstracções como o factor “económico” ou o factor “grande homem” para explicação, sem enunciar como actuam e como se fundem com a sociedade. O problema, portanto, está em saber quais são os factores concretizáveis no conjunto da sociedade» (prefácio à 1.ª edição de A Situação Económica). Eis aqui logo declarada a sua opção pelo "concreto", frente aos “esquemas abstractos”, nos quais parecia já incluir as interpretações gerais derivadas do marxismo. Esta ideia de "concreto", ou de encontro dos “factores concretizáveis na sociedade” foi então operada num estudo voltado para aquilo a que se pode chamar a “civilização material”, usando o termo consagrado numa famosa obra de Fernand Braudel. Para contornar a inflação de ideias e de interpretações esquemáticas, Macedo optou por pesquisar as condições materiais de sustento e manutenção dos grupos sociais e das instituições para, dessa óptica, tentar perceber as escolhas políticas da época. Pretendia, deste modo, criar uma base empírica sobre o passado com capacidade de autonomia (e de maior alcance científico) relativamente aos esquemas ideológicos que supriam as deficiências da investigação.
Foi assim que, na Situação Económica, Borges de Macedo deitou por terra as velhas polémicas em torno de Pombal (grande reformador ou grande conspirador), apurando as causas próximas das suas medidas na circunstância histórica a que pertenceram, bem como a sua concreta possibilidade de implementação; e, com este exercício metódico ao longo de pouco mais de cem páginas, o historiador foi podendo concluir que Pombal, além de ter estado profundamente condicionado pelo meio no pensar e no agir, foi muito mais pragmático, improvisador e errático do que julgam sempre os “poetas da história” em relação aos grandes políticos do passado. A tentativa pombalina de centralização do poder, que Macedo não nega, aparece nesta obra como esforço de tornar mais eficientes as embrionárias e casuísticas capacidades administrativa e militar da Coroa – e não como manifestação de um plano “iluminista” de reforma da sociedade. Enquanto actor político, o “grande homem” não está só esmagado pela circunstância, ele muitas vezes não consegue ou não quer ver para lá da circunstância. Interessou também ao autor identificar o grupo actuante que explica Pombal enquanto actor histórico destacado que não podia agir isolado até subir ao poder – aqui apareceu uma futura linha de investigação sobre a identificação de “grupos” a que Macedo voltará.
A investigação que desenvolveu para a sua tese de doutoramento mostrou que Macedo não deu por concluído, com A Situação Económica, o seu esforço de esclarecimento sobre os “factores concretizáveis da sociedade” na segunda metade do século XVIII. Nos Problemas de História, o historiador realizou em boa medida o trabalho que várias vezes, na Situação Económica, considerou ser território a desbravar pela investigação. Neste sentido, as duas obras completam-se inequivocamente, estando anunciado na primeira todo o programa de trabalhos e esboçadas as grandes linhas de análise – por exemplo, sobre a verdadeira natureza do “surto manufactureiro” sob Pombal –, encontrando-se na segunda quer uma ampliação do tempo histórico em estudo quer uma investigação mais sistemática da “civilização material”. Para esse redobrado esforço de apreensão dos “factores concretizáveis”, o historiador trouxe ao crivo da investigação, pela primeira vez, fontes cujo potencial não tinha ainda sido despistado (por exemplo, os registos da décima) e, de forma não menos inovadora, considerou também os condicionalismos geográficos (nomeadamente os custos de transporte) na análise da penetração das relações de mercado pelo território do reino.
Nos Problemas de História, essa ampliação do objecto de estudo permitiu a Macedo apresentar um tratamento coerente de um continuum temporal que liga o governo do conde da Ericeira sob D. Pedro II até às vésperas das invasões francesas sob o príncipe regente D. João, passando assim por todo o século XVIII e os reinados de D. João V, D. José I (incluindo o governo de Pombal) e D. Maria I. Neste trabalho, desde logo, é facultado ao leitor um quadro bastante conseguido e razoavelmente completo sobre as (até então) obscuras condições materiais da sociedade portuguesa de Setecentos – curiosamente, será completado, décadas depois, pela tese de José Manuel Tengarrinha (Movimentos Populares Agrários, orientada por Macedo), mais centrada nos problemas da economia agrária, aspecto fundamental que Os Problemas de História não puderam abarcar.
Por outro lado, o nosso historiador questionava já no seu doutoramento a visão – de longínquas raízes e próspero futuro – que entre nós sempre insistiu em ligar a fraca industrialização fabril à inserção do País no mercado mundial. Já em 1963 Macedo chamava atenção para o facto de o mercado interno ser diferenciado e absorver diferenciadamente a oferta industrial estrangeira (o que sempre permitiu a existência de uma protecção natural parcial para a produção interna). Neste sentido, também considerou que a eficácia dos arranjos mercantilistas e proteccionistas deveria ser situada pelos historiadores nesse contexto, devendo-se a sua prioridade política mais a preocupações fiscais do que a engenhosos propósitos de “industrialização”. A isto acrescia o facto, devidamente realçado pelo historiador, de serem as ligações externas da economia portuguesa fundamentais para o seu próprio sustento e desenvolvimento – como eram os casos perenes do sal e das culturas vinícola e frutícola –, devendo os alegados efeitos perniciosos da “dependência externa” ser examinados com a devida ponderação da natureza recíproca das relações comerciais.
Em O Bloqueio Continental, estes problemas foram trabalhados no período das invasões francesas e das guerras napoleónicas – prolongando mais um pouco a baliza temporal terminal dos Problemas de História –, propositadamente entrosados com as questões políticas e de alinhamento de Portugal no contexto da rivalidade entre as grandes potências. Macedo quis aqui, claramente, voltar às suas preocupações na Situação Económica, utilizando os “factores concretizáveis” para expor as insuficiências das explicações ideológicas, que teimavam em ocupar o vazio de uma investigação historiográfica pouco consolidada. Neste caso, a atitude dos grupos sociais e do poder político constituído perante acontecimentos de grande carga simbólica – a revolução de 1789 e a sua exportação por Napoleão –, que inspirara sempre leituras tão apaixonadas quanto o governo de Pombal, deveriam ceder perante considerações de outro tipo. Macedo expô-las: a complementaridade comercial desenvolvida com a Inglaterra e a importância da procura inglesa para as culturas de exportação da nossa agricultura impediam que se pudesse considerar, por mera questão de sobrevivência, o corte desses fluxos, como pretendiam os franceses; a permanência massiva e desobediente desses fluxos sob a ocupação francesa do nosso território demonstrou o carácter vital daquela complementaridade comercial; o papel do Brasil enquanto sustentáculo da nossa rendosa actividade atlântica só podia também manter-se na complementaridade comercial desenvolvida com o mercado inglês; e estas realidades não podiam ser ignoradas pelos decisores políticos, fadando ao fracasso as ideias dos proponentes de um alinhamento continentalista. Neste seu estudo de 1962 podem identificar-se predisposições de análise que serão plenamente desenvolvidas na sua História Diplomática Portuguesa: Constantes e Linhas de Força (1987).
Borges de Macedo colocou ainda a questão tecnológica no fulcro da reflexão sobre o atraso relativo da industrialização fabril portuguesa. Nos Problemas de História surge claro que é o salto tecnológico dado pela indústria inglesa no início do século XIX, mais do que as opções políticas domésticas, que colocam o parque industrial português em perigo. Mas a natureza do problema – a redução de custos de produção que permite baixar preços ao consumidor – era eminentemente económica e de difícil resolução “política”. A problemática tecnológica, ligada sobremaneira à problemática dos preços, relativiza a eficácia da substituição de importações, desiderato da crença desenvolvimentista das “políticas industrialistas”. Estas questões só serão aprofundadas na historiografia económica (e relativamente ao século XIX) a partir dos anos oitenta, com os trabalhos de Jaime Reis, David Justino, Pedro Lains e Fátima Bonifácio.
Macedo voltará a explorar as potencialidades da questão tecnológica num ensaio de 1979 («A problemática tecnológica no processo da continuidade república – ditadura militar – Estado Novo»), chamando atenção para o impacto do motor de explosão e da circulação rodoviária no século XX, mais uma vez querendo trazer à superfície “factores concretizáveis” num período histórico para o qual superabundam esquemas ideológicos de leitura do passado. O mesmo julgo poder dizer-se, entre a sua produção historiográfica mais tardia, do interesse por Fontes Pereira de Melo e Duarte Pacheco (enquanto ministros das obras públicas), a quem dedicou estudos biográficos. Um exercício de natureza um pouco diferente está patente nos ensaios «Para o encontro de uma dinâmica concreta na sociedade portuguesa» (1977) e «Para um estudo estrutural dos movimentos revolucionários portugueses: ensaio de formalização concreta» (1990), nos quais Macedo aborda o problema da definição de grupos sociais e de interpretação dos seus “interesses” e da sua actuação – questões em boa medida articuladas com a história económica. O cuidado que propôs na definição desses grupos actuantes a partir do encontro de interesses concretos e verificáveis tornou esses textos, sobretudo o segundo, numa oportunidade de explicitação do seu método historiográfico, a que chamou apropriadamente "formalização concreta".
Para evitar a queda do trabalho historiográfico na mera (e ilusória) descrição, impõe-se, para Macedo, uma formalização mínima do discurso do historiador, que permita situar os dados transmitidos em tendências "constantes" (isto é, duradouras) e "linhas de força" (relações ou características gerais emergentes do conjunto de dados reunidos). Esta formalização decorre da procura e do contacto com os “factores concretizáveis” da época em estudo e recusa a teoria como ponto de partida. Comungando tal recusa com a generalidade dos historiadores, em geral avessos à teorização a priori assumida, Macedo supriu a sua ausência com um implícito conceito de "cultura", de ampla natureza antropológica, que funcionava como matriz integradora das suas considerações historiográficas; esse conceito, aliás, encontrou outra expressão nas suas conhecidas alusões à "diferencialidade portuguesa". No que à história económica diz respeito, essa ausência de uma referência teórica a priori comporta riscos, nomeadamente se considerarmos que a teoria económica nos elucida mais do que embaraça na selecção e interpretação dos dados históricos identificados como económicos. Esta questão, que está já para lá da obra de Macedo, não deve, no entanto, fazer esquecer o seu papel na elucidação da pertinência da história económica para a compreensão do passado.