A resposta a esta pergunta não é linear, mas conduz directamente aos mistérios da nossa história política dos últimos cem anos. Antes de ensaiar uma resposta, há que dizer que, com poucas excepções, na história política europeia, o liberalismo deu alguns contributos para a construção jurídica das nossas sociedades e rapidamente se eclipsou da cena política enquanto força relevante ou doutrinalmente consistente. Não foi só entre nós. Mas, nalguns países, restaram fragmentos, no espectro partidário e no campo intelectual, que mantiveram vínculos mais ou menos verdadeiros com essa herança e com a própria designação liberal. Não assim em Portugal.
A verdade é que, cá e lá, a democratização dos regimes parlamentares foi a principal causa da liquidação do liberalismo enquanto doutrina consistente e politicamente organizada. As massas de cidadãos eleitores não eram seduzíveis pelos direitos individuais negativos nem pelo mercado e foram presa fácil para as causas demagógicas dos radicais, para o maná materialista do socialismo ou para a sensação de segurança da arregimentação nacionalista. Com o alargamento do sufrágio, o liberalismo ficou circunscrito aos manuais e a umas poucas cabeças pensantes que permaneciam pouco dadas àquilo a que no século XIX se chamava, sem rodeios e como nos livros dos Antigos, demagogia.
Em Portugal, o termo abastardou-se desde muito cedo, tomando um sentido próximo do que tem hoje nos Estados Unidos, isto é, como se fosse sinónimo de radical. Ora, um radical é alguém que, acreditando no igualitarismo acima de tudo, incumbe o poder político democrático de o promover. Desde que homens como Friedrich von Hayek restauraram, na segunda metade do século passado, o verdadeiro significado do termo liberal, percebemos que radicalismo e liberalismo são opostos. Mas, na nossa prática política, durante muito tempo, a palavra liberal foi associada à demagogia radical e à anarquia por esta semeada a partir do próprio Estado. Criaram-se muitos anticorpos que até hoje perduram: o catolicismo, reagindo ao pendor anti-clerical do radicalismo de pseudónimo liberal, sempre repudiou a memória do período histórico associado a esse termo; e a substituição do velho radicalismo pelo marxismo sovietófilo e puritano exigiu, nas hostes “laicistas”, idêntico corte.
Porque as instituições políticas directamente legadas pelo liberalismo soçobraram entre nós com as experiências jacobina e autoritária, comprometeu-se qualquer continuidade institucional que inspirasse outras continuidades, culturais ou partidárias. O liberalismo foi engolido pela hegemonia dos dois grandes pólos ideológicos em que as cabeças pensantes portuguesas se foram formando desde então: marxismo e catolicismo social. É provável que ambos estejam hoje em crise, mas poucas dúvidas pode haver que moldaram de tal modo o ambiente político português que o renascimento de uma corrente liberal se tornou aqui especialmente difícil.
Os herdeiros das doutrinas pós-liberais do século passado ainda são quem entre nós faz a opinião publicada e “educa” as novas gerações. Converteram-se à democracia formal criada na restante Europa e pela qual nunca haviam tido grande estima, depois das versões puras das suas utopias terem sido comprometidas pela realidade e pelas leis da economia. Antes assim. Mas os liberais que restam, continuando a pensar que essa correcção de rumo ainda não é a certa, dizem, entre dentes, que só estaremos no bom caminho quando percebermos que o mercado e a armadura jurídica dos direitos individuais nos fazem mais livres do que o voto ou o poder ilimitado das assembleias e dos tiranetes eleitos.
Como essa consciência é tão rara, a procura de um partido liberal é mínima, inviabilizando-o. Ou os liberais tentam aumentar essa procura ou esperam pelos desígnios da Providência. Até lá não haverá surpresas.
Abril de 2005 (escrito para o semanário Domingo Liberal, que resolveu não publicar)