[Publicado em versão condensada (sem parte da introdução e sem alínea A) no boletim Amnistia Internacional Informação, II série, n.º 26 (Abril/Junho 1999), pp. 18-19]
– Alguns excêntricos tentam evitar envolver-se em hierarquias...
L. Peter e R. Hull, O Princípio de Peter, Ed. Futura, Lx. 1973, p. 26
Numa altura em que fomos convidados pelo primeiro boletim de 1999 a iniciar um debate sobre a prevista revisão do Mandato da Amnistia Internacional (A.I.), agendada para a reunião do Conselho Internacional de 2001, pretende este texto ser um contributo para esse fim. Começarei, a partir da tradição político-jurídica em que me situo (o liberalismo clássico), por esclarecer a minha posição crítica perante o articulado da Declaração Universal dos Direitos Humanos (D.U.D.H.) de 1948 de modo a ser melhor compreendida a minha adesão ao Mandato e as minhas opiniões sobre o futuro da A.I. Assim, o texto pretende mostrar que: A) a D.U.D.H., longe de ser um texto perfeito, encerra contradições preocupantes, pelo menos para as pessoas que se revejam na tradição do liberalismo clássico; e B) que não há coincidência nem dependência absoluta dos princípios do Mandato da A.I. relativamente aos direitos consagrados na D.U.D.H. e que, de uma perspectiva dos direitos individuais da tradição liberal clássica, o Mandato é um meio rigoroso e eficiente para defesa do mais essencial dos direitos, o «direito de cada pessoa à integridade física e mental», tal como consagrado no Mandato. Com estas reflexões não se pretende defender que a tradição referida seja a única válida, pretende-se apenas fazer, em nome dessa tradição, a apologia do Mandato da A.I. E pretende-se também mostrar ser possível a um liberal clássico, com reservas relativamente a parte da D.U.D.H. (os “direitos sociais”), aderir à A.I. e rever-se plenamente no seu Mandato. A partir daqui defender-se-á a actual redacção do Mandato e uma assumida especialização da A.I. como forma de preservar a sua credibilidade, independência e eficácia.
A) Para o liberalismo clássico, os direitos são sempre dos indivíduos e nunca das colectividades. Considerar qualquer colectividade (nação, etnia, igreja, clã, família, empresa, clube, partido, sindicato, etc.) sujeito de direitos implica sujeitar-lhes os indivíduos e os seus direitos. Os direitos das colectividades só podem emanar dos indivíduos, pelo que elas só poderão ser consideradas, a esta luz, realidades voluntárias: isto é, colectividades a que os indivíduos aderem, no uso de uma liberdade juridicamente inalienável. Daí o conflito insanável, para a tradição liberal clássica, entre os direitos individuais que pretende preservar e os chamados “direitos sociais” que, sob a influência das correntes radicais, socialistas e conservadoras, se foram com eles confundindo. A D.U.D.H. consagra, nos seus vinte primeiros artigos, as garantias da liberdade individual, tal como se foram definindo desde a Declaração de Direitos inglesa de 1689 (embora não explicite, como esta, um princípio tão fundamental como o habeas corpus – e que dizer da omissão de outro princípio de 1689, depois tornado no leitmotiv da rebelião Americana de 1776, o de no taxation without representation?). Mas o estabelecimento, logo no artigo 1.º, do dever dos indivíduos agirem «em espírito de fraternidade» é já uma cedência à retórica da “fraternidade laica” da Revolução Francesa na sua versão radical de 1793 e através da qual em geral se intrometem os argumentos a favor dos “direitos da comunidade” sobre o indivíduo. O artigo 15.º garante o direito à nacionalidade, no que parece um excesso de identificação da liberdade com a ideia de Estado-nação, outra herança própria da Revolução Francesa mas que é muito discutível – advogar o direito à mudança de nacionalidade é importante mas não é suficiente: o direito de gozar de garantias fora do quadro de uma nacionalidade politicamente organizada também deveria ser assegurado. O artigo 17.º fala no direito “da pessoa” à propriedade colectiva, o que é uma contradição obvia e uma cedência ao comunismo triunfante em 1948 (é-se sempre individualmente proprietário daquilo que se tem ou usufrui, mesmo que seja uma parte de algo que é também, em parte, propriedade de outrém). Depois, o artigo 21.º começa a pecar por linguagem de significação duvidosa, com expressões como «a vontade do povo é o fundamento da autoridade dos poderes públicos», sem que se defina o que é o povo ou os poderes públicos. Não é aceitável este exclusivismo democrático ou eleitoralista que se pretende sugerir na gestão das formas de autoridade e muito menos introduzir o princípio da legitimidade da autoridade se esta puder reclamar uma origem “democrática” ou “popular”. São preferíveis enunciados de princípios que limitem ou neutralizem o poder das autoridades, qualquer que seja a sua natureza. Além disso, o poder judicial é um poder público e muitos resistirão à ideia de que, para serem legítimos, os juizes tenham de ser eleitos (o mesmo é extensível aos monarcas hereditários, cuja existência per se não atenta contra a liberdade individual de ninguém). O artigo 22.º garante o direito à “segurança social” mas esta não é (como provavelmente não poderia ser) definida, por uma razão simples: em 1948, tal como hoje, não há acordo sobre o que deve ser um sistema de segurança social, que parte deve caber nele ao Estado, que benefícios deve cobrir e para quem, ou sequer se a maioria dos indivíduos realmente ganha alguma coisa com esses sistemas. Há, no mínimo, razões fundadas para se pensar que esses sistemas têm legitimado (tal como o mito do “ensino gratuito”) uma crescente apropriação pelos governos da riqueza produzida sem que seja obvio que a gestão resultante dos recursos disponíveis seja mais eficiente e responsável por melhorias de benefícios. O artigo 23.º confunde o direito à escolha do trabalho (isto é, no fundo, o direito a não ser obrigado a fazer algo que não resulte do respeito da igual liberdade dos outros enformada nas regras recíprocas de justa conduta ou em contratos livremente aceites pelo próprio) com o demagógico “direito ao trabalho” dos socialistas do século XIX (e isto é mais uma obvia cedência ideológica historicamente compreensível – mas não aceitável). O princípio de «salário igual por trabalho igual», no mesmo artigo, pressupõe a negação da diversidade de talentos e capacidades humanas e da mais elementar liberdade contratual (Hayek escreveu, a este propósito, que numa sociedade livre ninguém pode esperar ser remunerado em virtude das suas habilitações mas só do uso e utilidade que lhes souber dar). É muito curioso que este artigo 23.º garanta o direito de «fundar com outras pessoas sindicatos» mas não o de “fundar uma empresa ou fazer negócio (com outras pessoas)”. Sobre o próprio conceito de “trabalho” que transpira da Declaração muito haveria a dizer: trata-se de um conceito muito oitocentista, ligado essencialmente à ideia de trabalho único e assalariado e que pouco ou nada diz respeito a outras realidades importantes como o “auto emprego”, o “trabalho livre” ou a pluralidade de ocupações no mesmo indivíduo. Os artigos 24.º, 25.º e 26.º garantem a protecção de outros “direitos” deste género, que não são resultado da aplicação universal de regras recíprocas de justa conduta entre os indivíduos mas têm de implicar uma acção colectiva que pretenda atingir os fins enunciados, pressupondo-se que os mesmos indivíduos poderiam depois reclamar das autoridades públicas incumbidas da prossecução desses fins (os governos?) a respectiva quota parte dos benefícios consagrados na Declaração; mas esta nada diz sobre os meios de efectivar tal reclamação (de obrigar as autoridades públicas a cumpri-los), porque só a tentativa de os passar a escrito mostraria o pantanoso terreno em que se movem os proponentes de tais “direitos”. Esses outros “direitos” são o repouso e os lazeres, «a limitação razoável da duração do trabalho e as férias pagas», um nível de vida «suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e bem-estar», a «segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez», a ajuda e assistência especiais à maternidade e infância (25.º), a educação elementar gratuita, a generalização do ensino técnico e profissional, o acesso ao ensino superior em função do mérito de cada um, a pertença prioritária aos pais da escolha do género de educação a dar aos filhos (26.º). Ora, a aceitação da validade destes “direitos” (normalmente chamados “sociais”), além de significar o abandono de uma concepção de sociedade em que cada um vive por sua conta e constrói livremente o seu percurso (associando-se apenas a outros voluntariamente, no emprego, no matrimónio, etc.) a favor de outra em que cada um participa numa gestão comum de quase tudo, implica passar-se do universo jurídico das regras recíprocas de justa conduta entre os indivíduos para o universo político das regras de acção colectiva. Esta passagem é que é problemática, pelo menos para aqueles que se revêem na tradição do liberalismo clássico e que estão essencialmente preocupados com a limitação do poder e das formas de acção colectiva a favor da esfera de liberdade de consciência e acção de cada pessoa. O ponto 2 do artigo 26.º e os artigos 27.º e 28.º têm uma redacção muito vaga, resultando num mero enunciado mais de ideais que de princípios objectiváveis. O artigo 29.º, de uma forma também pouco clara, proclama os direitos da comunidade sobre o indivíduo, dizendo que fora da primeira os segundos não poderiam desenvolver a sua personalidade; mas, para uma carta de direitos, o facto central deveria ser que a “comunidade” em geral é que limita e tem limitado esse desenvolvimento da personalidade e, se assim não fosse, a própria ideia de uma declaração de direitos não teria sentido (isto é tanto mais preocupante quanto se parece admitir, em linguagem equívoca no ponto 2 deste artigo, limitações ao exercício dos direitos individuais em nome de «justas exigências da moral» ou da «ordem pública»).
B) No art.º 2.º dos seus estatutos, a secção portuguesa da A.I. define como seu Mandato (1) a promoção do conhecimento e da adesão aos valores (considerados indivisíveis e interdependentes) consagrados na D.U.D.H. e em «outros instrumentos de Direitos Humanos reconhecidos internacionalmente» e (2) a oposição («por todos os meios apropriados») às violações da liberdade de consciência e de expressão de qualquer pessoa, bem como da sua integridade física e mental – este segundo ponto é depois especificado, e muito correctamente, em quatro alíneas que nomeiam: (a e b) detenções irregulares (sem respeito pelos devidos procedimentos judiciais) de pessoas que não exerceram nem advogaram a violência contra outrém (por razões de consciência, «origem étnica, sexo, cor ou língua»), (c) a pena de morte e a tortura e (d) execuções extrajudiciais, incluindo os “desaparecimentos” (execuções secretas). Desde já, há a observar que, independentemente das considerações por mim feitas na alínea A) deste texto, me parece obvio, perante o Mandato, que a adesão à A.I. implica a aceitação – mesmo que em atitude de compromisso com outros modos de ver e estar – da D.U.D.H. na sua integridade; enquanto membros, todos temos de trabalhar para «promover o conhecimento e a adesão» a esse documento (ele é um instrumento de referência e um ponto de encontro de muitos credos). Dito isto, é evidente no Mandato uma escolha deliberada de focagem em determinados direitos humanos: nas quatro alíneas do Art.º 2.º, a A.I. não se propõe lutar igualmente por todos eles; dá prioridade àqueles que implicitamente julga os mais básicos de todos e que, com rigor e pormenor, enumera nessas quatro alíneas. A isto pode chamar-se uma especialização da sua missão na denúncia e na luta contra as detenções irregulares, a pena de morte, a tortura e as execuções extrajudiciais. Tudo isto está contido na D.U.D.H. mas nem tudo o que nesta está contido consta do Mandato. O Mandato da A.I. compromete-se a zelar pelo cumprimento em todo o mundo de alguns direitos individuais, de uma forma que quase pode considerar-se minimalista, mesmo do ponto de vista do liberalismo clássico (que exclui os chamados “direitos sociais” mas pressupõe outros “individuais” para lá dos defendidos no Mandato). O que é fundamental sublinhar-se nesta focagem do Mandato nos direitos de qualquer pessoa em qualquer parte do mundo não ser sujeito às situações descritas pelas quatro alíneas referidas é que esses direitos são a base mais sólida sobre a qual se constrói e preserva a liberdade. O Mandato da A.I. assume uma vigilância universal, a que aderem homens e mulheres livres, relativamente a essa base da liberdade; trata-se de um enunciado pela negativa: a A.I. repudia, denuncia e luta contra a ocorrência de determinadas situações bem definidas. Na ausência dessas situações presume que há condições para as pessoas viverem em liberdade e decidirem pela positiva o que fazer com ela de acordo com as suas preferências – mas esse campo já está para lá da sua missão.
A tentação de adoptar uma postura maximalista de defesa de direitos (por exemplo, na forma alargada da D.U.D.H., incluindo até os “direitos sociais”) levaria a A.I. a uma dispersão que comprometeria a credibilidade, independência e eficácia da sua acção. Ao abandonar a sua atitude de vigilância pela negativa e envolvendo-se em causas muito abrangentes ou sectoriais pela positiva (propondo medidas contra o desemprego? contra a interrupção voluntária da gravidez? contra a degradação do meio ambiente?), a A.I. passaria a oferecer aquilo que já muitas outras O.N.G.s, associações, movimentos e partidos oferecem, descaracterizando-se e confundindo-se com o campo dos interesses especiais e da política. E qualquer investida neste campo, tendo em conta a diversidade de ideias e preferências políticas dos seus membros, envolveria riscos acrescidos de divisões internas e de importação de debates e rivalidades que actualmente, e sabiamente, mantém fora das suas paredes; da mesma forma, a percepção pública dos propósitos da A.I. seria muito mais fortemente condicionada pelas variadas e específicas preferências políticas das pessoas e menos por uma reflexão mais elevada sobre o compromisso com as condições básicas da liberdade. Depois, há um factor muito importante: Adam Smith, em 1776, chamou atenção para a importância do princípio da divisão do trabalho para o progresso das nações – só a especialização de determinadas pessoas em determinadas funções permite o aparecimento de bens e serviços de melhor qualidade. O mesmo se passa com as organizações: a A.I. deve escolher uma missão específica e especializar-se nela, para dar ao mundo um serviço de excelente qualidade. Aquilo que está no Mandato, sendo específico, é uma tarefa ciclópica (haverá alguém que ache que os objectivos do Mandato já deixam a A.I. com pouco para fazer?!). Porque os recursos são sempre escassos, o alargamento dos objectivos da A.I. conduzirá à quebra da qualidade do serviço preciosíssimo que ela presta aos homens e mulheres do planeta; é que não se pode fazer tudo ao mesmo tempo e muito menos de maneira eficiente. Todos nós temos múltiplas fidelidades, pertencemos a vários grupos e desenvolvemos simultâneas relações de sociabilidade: em sítios diferentes realizamos coisas diferentes sem querermos fazer tudo no mesmo sítio. Pessoalmente, ao aderir à A.I. (e Deus sabe que é difícil a minha adesão a organizações de qualquer tipo), aderi especificamente ao seu Mandato actual e à sábia identificação que ele faz dos maiores perigos para a liberdade pessoal. Também por estas razões preferiria que a A.I. se coibisse de qualquer tipo de colaboração com outras O.N.G.s e com quaisquer organismos governamentais e internacionais e que se mantivesse o princípio das secções nacionais não trabalharem casos relativos ao próprio país (as referências de Pierre Sané, na cópia da sua comunicação distribuída no último boletim, a formas de cooperação com outras O.N.G.s e ao entendimento da A.I. como «parte de um vasto movimento de direitos humanos» deixa-me bastante apreensivo...: não será isso o fim da independência da A.I. e o início de uma opção por objectivos demasiado abrangentes e cada vez mais difíceis de defender objectivamente?
15 Abril 1999 (enquanto membro da AI)