[Grão
de Trigo, Maio 2011, p. 2]
Desde o
Antigo Testamento que os crentes são confrontados com a necessidade de colocar
Deus acima de qualquer laço de "sangue" ou de parentesco (o episódio
de Abraão e Isaac ou, por exemplo, em Deut. 13 e I Samuel 2). Assim, o
discipulado radical que Jesus parece pedir no Novo Testamento não é uma
inovação, mas está na tradição bíblica (como seria de esperar): muita coisa na
vida é importante, mas nunca ao ponto de se sobrepor a Deus.
Isto não é o
mesmo que dizer que os laços biológicos e familiares sejam incompatíveis com a
fé, como uma leitura superficial de Lucas 14:26 poderia dar a entender. Pelo contrário,
Jesus parecia não separar os apóstolos das suas famílias, frequentava as suas
casas e curou a sogra de Pedro (Mateus 8:14-15); há até indícios de que alguns
apóstolos se faziam acompanhar das suas mulheres (I Cor. 9:5). Aliás, Jesus nem
sempre aceitou que o seguissem deixando família e responsabilidades para trás,
como Marcos 5:19 mostra, em contraponto ao episódio mais conhecido de Mateus
19:21 (Marcos 10:21). Evangelizar não era só "partir", era também
"ficar".
Julgo que a chave para esta só aparente contraposição entre
família e Evangelho está em Mateus 16:24-25: Jesus esclarece que negar-se a si
próprio é o primeiro exercício exigido a quem o segue. Só nessa medida é que
deixar os laços ou os bens familiares pode ser necessário. Não por o obstáculo
ser a família, mas por a nossa atitude não ser incondicionalmente aberta a
Deus. Colocarmos Deus acima de tudo não implica aniquilarmos ou esquecermos
todo o resto; implica apenas submeter-Lhe todo esse resto. Amamos pais, irmãos
e filhos, mas amamos mais a Deus. Mais: é amando Deus acima de tudo que amamos
correctamente os que nos são próximos.
Jesus, como sempre, mostra o caminho:
em Mateus 12:46-50, clarifica que a sua verdadeira família não é a sua mãe e os
seus irmãos, mas a Igreja. A nós, crentes, que somos a Igreja, cumpre-nos
corresponder a essa escolha de Jesus, aceitando sem reservas esse parentesco
espiritual.
DESAFIO… Quando
agonizava na cruz, cumprindo a sua opção total pela Igreja, Jesus não se
esqueceu de cuidar de sua mãe, entregando-a ao cuidado de um discípulo (João
19:26-27). Pensemos este mês se temos sabido harmonizar e sujeitar este cuidar
dos outros ao amor a Deus.