quarta-feira, junho 12, 2013

A evangelização, dinâmica da nossa fé

[Grão de Trigo, Maio 2012, pp. 3 e 4]

Evangelizar, do Antigo ao Novo Testamento

O livro de Isaías é um dos textos do Antigo Testamento a que mais se recorre no Novo Testamento como demonstração da continuidade e da interdependência entre a Velha e a Nova Alianças. As palavras «evangelho» e «evangelização», tão importantes para nós cristãos, aparecem na Bíblia como uma das cordas que amarram bem as duas Alianças e as duas partes das Escrituras. É sabido que há no Novo Testamento referências explícitas ao Antigo, acompanhadas da constatação de que algo prometido se cumpriu. Este tipo de ligações é feito por vários autores de livros e epístolas do Novo Testamento, mas também pelo próprio Jesus, como veremos a seguir com um caso concreto. Aliás, um biblista congregacionalista do século XX, Charles Harold Dodd, defendeu a existência de uma trama de ligações textuais deste género (testimonia) que presumivelmente seria da autoria de um rabi muito especial que o ensinara aos apóstolos e passara aos evangelistas – o próprio Jesus. Ora, é precisamente num testimonium deste género que o verbo «evangelizar» é pronunciado por Jesus para desvendar o propósito da sua missão, elucidando-nos também sobre o próprio significado da palavra «evangelização».

Evangelizar é anunciar a boa-nova

Trata-se da cena relatada em Lucas 4:16-21, na qual Jesus lê na sinagoga de Nazaré um trecho do livro de Isaías: «O Espírito do Senhor está sobre mim, pelo que me ungiu para evangelizar os pobres; enviou-me para proclamar a libertação aos cativos e restauração da vista aos cegos, para pôr em liberdade os oprimidos e apregoar o ano aceitável do Senhor». Em Isaías 61:1-2 lê-se de facto: «O Espírito do Senhor está sobre mim, porque o Senhor me ungiu para pregar boas-novas aos quebrantados, enviou-me a curar os quebrantados de coração, a proclamar libertação aos cativos e a pôr em liberdade os algemados; a apregoar o ano aceitável do Senhor e o dia da vingança do nosso Deus; a consolar todos os que choram». Na citação de Isaías em Lucas é utilizado o termo εὐαγγελίσασθαι (euangelisasthai), composto por εὐ («bom») e αγγέλω («anunciar», palavra da qual deriva o termo «anjo», isto é, «mensageiro»). Aliás, em Lucas 2:10-11, já um anjo utilizara o mesmo termo para anunciar o nascimento de Jesus; com o mesmo termo fora também anunciado a Zacarias o nascimento de João Baptista (Lucas 1:19). Evangelizar é, pois, anunciar a boa-nova do nascimento de (e da redenção em) Jesus Cristo – e este nascimento e redenção, por sua vez, são sinónimo das promessas de Isaías que Jesus disse cumprir.

O que é a boa-nova

Jesus não pode ter escolhido ao acaso o trecho do livro de Isaías que leu na sinagoga de Nazaré. Aquelas palavras são demasiado adequadas à sua pregação para serem uma escolha entre outras possíveis. Jesus não poderia dizer de qualquer trecho ou de qualquer profeta o que disse depois de acabar de ler: «Hoje se cumpriu a Escritura que acabais de ouvir». A Escritura cumprira-se porque era o próprio anúncio público de Jesus que consumava as promessas veiculadas por Isaías. Era o facto de ele estar ali a atualizar o que Isaías escrevera que tornava real o que o profeta anunciara. A boa-nova é que as notícias de salvação que Isaías antecipara, para cuja chegada Isaías apontara, estavam agora concretizadas, realizadas, alcançadas porque estava ali, anunciando-se a si mesmo, aquele que por excelência tem sobre si o Espírito do Senhor, e que é o Ungido do Senhor. A boa-nova é, assim, a chegada do Ungido que concretiza as promessas de Isaías: «A libertação aos cativos e restauração da vista aos cegos, para pôr em liberdade os oprimidos, e apregoar o ano aceitável do Senhor».

«Libertação aos cativos» e «pôr em liberdade os oprimidos»

Em Romanos 6, Paulo interpreta claramente a libertação por meio de Jesus Cristo como uma vitória sobre o pecado. Isto é, o pecado nos aprisiona e nos faz cativos. Sob o pecado, somos escravos de paixões e não sujeitos morais que orientam conscientemente e em liberdade as suas vidas. E Cristo liberta porque nos livra desse jugo do pecado. A libertação dos cativos que Isaías antecipou e Cristo concretizou é o advento de uma liberdade concedida pela graça de Deus, mas de que só os justos na sua conduta e no seu sentir consciente serão merecedores. Paulo di-lo: «Uma vez libertados do pecado, fostes feitos servos da justiça» (Romanos 6:18). O justo é o «servo da justiça» que no seu ser acolhe a graça e se deixa por ela conduzir, abrindo mão das paixões aprisionantes e do pecado. A liberdade cristã é, pois, um compromisso com a justiça, uma firmeza nos caminhos da graça que, tal como Paulo reafirma em Gálatas 5:1, nos obriga a perseverar para não voltarmos a cair no «jugo da servidão». Da falsa liberdade do mundo, segundo a qual é livre quem dá rédea livre às suas paixões, somos resgatados por Cristo para a verdadeira liberdade que nos torna conscientes da opressão das paixões.

«Restauração da vista aos cegos»

Deus é, na verdade, a luz da nossa consciência e do nosso discernimento. Como simples seres naturais sem a graça de Deus, ainda nas palavras de Paulo, «vemos como em espelho, obscuramente» e, por isso, só «conhecemos em parte» (1 Coríntios 13:12). A cegueira tem aqui um valor metafórico, simbólico, de ausência de consciência e discernimento. «Ver» é ter consciência e discernir, enxergar a justiça. É assim que Jesus várias vezes fala de cegueira, repreendendo aqueles que, sem consciência nem discernimento, se assumem condutores de outros, podendo apenas encaminhá-los para a perdição e perdendo-se a si duplamente por essa (ir)responsabilidade e falta adicional (Mateus 15:14, 23:16; Lucas 6:39). «Ai de vós», avisou Jesus. Ai de nós! Por esta luz que nos faz ver e só vem da graça de Deus se torna ainda mais imperiosa a conversão a que somos chamados pelo anúncio da boa-nova. Porque só assim não nos perdemos nem precipitamos os outros na perdição. Por isto disse Jesus que os convertidos seriam a luz do mundo (Mateus 5:14) – porque, se assim nos podemos exprimir, refletem para os outros a luz que recebem pela graça.

«Apregoar o ano aceitável do Senhor»

A versão Figueiredo usa a expressão «ano favorável». É um símbolo do perdão de Deus, uma transferência da ideia veterotestamentária do ano sabático e do jubileu, períodos de, respetivamente, sete e cinquenta anos, após os quais os credores perdoavam as dívidas aos devedores (Êxodo 23:10-11; Levítico 25:1-28; Deuteronómio 15:1-6). Levítico 25:10 diz mesmo: «Santificareis o quinquagésimo ano, proclamando na vossa terra a liberdade de todos os que a habitam». Jesus busca aqui um símbolo de liberdade como sinónimo de um perdão que é concedido por Alguém de Quem somos devedores. Lembremo-nos da tradução, aliás muito adequada (versão clássica Almeida), da Oração do Senhor que nos cultos da nossa igreja se guarda ainda: «Perdoa as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores»; aí estamos pedindo também pelo «ano aceitável do Senhor». Se o perdão vier, somos livres e o perdão foi prometido pelos profetas e concretizado pela mediação do nosso sumo-sacerdote, Jesus Cristo. O anúncio do «ano aceitável do Senhor» diz, pois, respeito à nossa dívida para com Deus, na relação pessoal que com Ele temos, e não às prisões mundanas de que nos fazemos cativos por nossas próprias «mãos» (decisões ou abstenções).

Porquê e como anunciar a boa-nova

Como discípulos do nosso tempo, em que atualizamos a fé daqueles que foram os primeiros convertidos, somos testemunhas da morte e da ressurreição de Jesus (Lucas 24:48). Somos também enviados de Jesus ao mundo, seus embaixadores (João 20:21) e, assim, depositários da Grande Comissão (Mateus 28:19 e Marcos 16:15). A fé não se guarda nem se esconde – só se realiza plenamente no testemunho, na exortação e edificação do próximo (Mateus 5:16). Enquanto anunciantes ou mensageiros da boa-nova, somos como anjos do Senhor. Refletir a luz da graça implica verbalizar o que recebemos e transmiti-lo a outros. «Tudo o que quereis que os homens vos façam, fazei-lho também vós» (Mateus 7:12). O anúncio da boa-nova, a evangelização, tem lugar nas nossas vidas privadas, onde quer que estejamos – na família, no trabalho, entre amigos e conhecidos e com quem quer que nos cruzemos no dia-a-dia – mas sempre da forma apropriada, para que se não torne contraproducente. Por outro lado, a igreja tem sido vista como o primeiro veículo da evangelização entendida como missão. Mas podemos dizer que ela própria é evangelização. Como crentes, formamos igrejas para nos exortarmos mutuamente e para alumiarmos nos lugares e nas cidades onde vivemos a luz do evangelho – para o anunciarmos aos outros e para sermos agentes dele. Formar igrejas e pertencer a uma igreja é a primeira forma de respondermos positivamente à Grande Comissão.