[Grão de
Trigo, Out. 2012, pp. 4-5]
Na
apreciação que fazemos daqueles que nos antecederam na fé há dois tipos de
atitude que devemos evitar: aquilo que C. S. Lewis chamava “snobismo
cronológico” (quando julgamos que somos mais inteligentes e “avançados” do que
os nossos antepassados) ou a atitude de veneração desses antepassados quase
como se fossem semideuses (por os considerarmos mais próximos de Deus do que
nós próprios podemos hoje estar). Ora, Deus está a igual distância de todos os
séculos – e, portanto, dos homens do passado, do presente e (o que é mais
difícil de entender) do futuro. Pensemos nisto: haverá épocas históricas em que
a graça de Deus é mais intensa do que noutras? Creio que não.
Estas reflexões
vêm a propósito do dia da Reforma, em que comemoramos a atitude e a ação de
(re)afirmação da fé evangélica por muitos antepassados nossos, com destaque
para os chamados reformadores do século XVI (Lutero, Calvino, Melâncton,
Bullinger). Segundo o Dicionário da
Língua Portuguesa da Academia das Ciências de Lisboa, um dos significados
da palavra “protesto” é “afirmação feita de modo convicto e insistente” e é
deste significado (e não de “reclamar contra qualquer coisa”) que deriva o nome
de “protestante” que foi dado àqueles reformadores e a quem com eles
concordava. Estes reformadores foram chamados “protestantes” porque afirmaram
convicta e insistentemente que havia uma forma correta de entender o Evangelho
– aquela que Lutero resumiu nas famosas “cinco solas” (só a Deus glória; somente Cristo; só a Graça; só a Fé; só a
Escritura).
Ao comemorarmos o dia da Reforma estamos a atualizar essa adesão
aos princípios convicta e insistentemente afirmados no século XVI pelos
reformadores protestantes. Esses princípios foram explicados em numerosos e,
nalguns casos, longos textos escritos pelos reformadores daquele século. Esses
textos ensinaram as gerações seguintes de protestantes (ou cristãos reformados)
sobre a forma correta de entender o Evangelho e constituem, por isso, um
ensinamento sobre a fé ou um “magistério”. Por isso se chama “Reforma
Magisterial” ao conjunto daqueles textos e às atitudes e escolhas por eles
inspirados. Ao contrário do que muitas vezes dizem os detratores da Reforma, os
textos dos reformadores não foram nem quiseram ser “criativos” ou inovadores,
pois são uma leitura refletida, pensada, sobre a Bíblia e sempre em diálogo com
os principais autores cristãos de vários séculos, começando pelos da chamada
Patrística (teólogos dos séculos I a IV).
Para os reformadores, a Reforma era
uma purificação. A Igreja precisava de ser reformada para ser Igreja e não para
ser outra coisa; precisava de ser reformada para ser o que fora no início e não
para ser uma coisa “nova”. Quem inovava era quem pensava que a tradição dos
homens (os hábitos sedimentados ao longo dos anos e dos séculos) podia ombrear
em verdade e legitimidade com o Evangelho, com os episódios da Revelação que o
anunciaram no Antigo Testamento e com os textos do Novo Testamento que entraram
no Cânone como os seus melhores e mais inspirados relatos e interpretações. O
propósito dos reformadores era restaurar, reatar e fazer reviver a Igreja. Como
disse um autor inglês do século XVIII, somos protestantes por sermos zelosos e
não por sermos indiferentes.
A esta luz, o que são ou o que devem ser para nós
os reformadores do século XVI? A “Reforma Magisterial” não é um “Novíssimo
Testamento” que se acrescente ao Antigo e ao Novo. A obra literária e eclesial
dos reformadores do século XVI (que inclui as confissões e catecismos então
elaborados) não pretendeu acrescentar uma vírgula ao que já fora revelado ou ao
que já estava no Cânone. Não pretendia sequer instaurar um género de
interpretação exclusiva dos Textos Sagrados, como acusaram hipocritamente
alguns autores que aceitaram e aceitam a interpretação exclusiva e, para
alguns, infalível de papas e/ou concílios (por mais “ecuménicos” que sejam).
A
Reforma reafirmou a soberania de Deus, omnipotente, omnipresente e omnisciente,
e a qualidade da Bíblia como regra de fé e único ponto de apoio para
compreendermos o lugar de Cristo na relação que temos com Deus. Deus não se
adapta às nossas necessidades e conveniências para se tornar menos omnisciente
e mais moldável às nossas teorias mundanas sobre a liberdade do ser humano. Ao
contrário do que vêm repetindo há séculos os detratores da Reforma, se a
omnisciência de Deus e a liberdade humana (necessária aos atos morais) parecem
incompatíveis é porque a nossa razão é limitada e não porque Deus não possa
conhecer perfeitamente o futuro de cada um de nós até à consumação dos tempos.
E, se afirmamos a falibilidade da razão humana perante a Bíblia, nunca foi,
desde os reformadores do século XVI, para concluir (como vêm dizendo os nossos
detratores) que a razão não é o instrumento por excelência para lermos a
Bíblia, mas sim que a devemos usar uma vida inteira com a humildade e o cuidado
com que preservamos e cultivamos o que é frágil e escasso.
A Reforma foi,
pois, um exercício de, nas nossas consciências individuais e na vida da Igreja,
dar a Deus o que é de Deus e aos homens o que é dos homens. Deus é o Deus da
Bíblia e não o Deus da razão. Para O compreendermos, temos de deixar operar a
Sua graça por meio da leitura e do estudo (muito estudo) da Sagrada Escritura.
O livre exame (a liberdade de todos lerem a Bíblia) é para cada um de nós um
dever de humilde estudo para toda a vida e não um direito de súbita
instrumentalização do Texto pela nossa soberba ou vontade de poder (o que
fizeram os radicais que se aproveitaram da Reforma, mas também faziam e fazem
os detratores da Reforma que diziam e dizem ser essa a consequência do livre
exame). Por seu lado, a razão é uma faculdade humana, uma luz que nos foi dada
por Deus, como tudo o que temos e somos; e como luz que pertence a seres
imperfeitos, mortais e pecadores, a razão é intermitente, fraca e muito
limitada, mas é o que temos de melhor em nós mesmos e, como nós mesmos, só
cresce e frutifica auxiliada pela graça e num caminho de humilde e fiel
procura.
A Reforma é fidelidade e não inovação. Somos chamados, acima de tudo,
a ser fiéis. Fiéis como Abraão foi no monte do Templo; fiéis como Moisés foi no
monte Sinai; fiéis, enfim e sobretudo, como o Jesus humano foi no monte de
Gólgota. Porque nesse ponto central de toda a história da Salvação – a Paixão
de Cristo que a sua cruz representa – está gravada com força inquebrantável e
para sempre a fidelidade como nosso destino, nosso caminho e nossa redenção. Em
Jesus, o homem foi fiel a Deus até ao fim, até ao limite das suas forças; e
Deus foi fiel à promessa de nos proporcionar um salvador eficaz porque capaz de
ser um mediador perfeito (divino e humano) como nenhum homem ou ser celestial
poderia ser. Em Cristo, visto de baixo, a partir da nossa condição humana,
temos um irmão capaz de rasgar, como pioneiro, o caminho da perfeita
fidelidade; no Cristo eterno e celestial, como só o podemos ver pela graça e
pela Revelação, temos o próprio Deus que se acercou de nós, fazendo-se um de
nós, e revelando-nos “em verdade e em vida” o nosso propósito – o nosso
destino, caminho e salvação.
Este é o grande e fundamental legado dos
reformadores do século XVI e da sua “Reforma Magisterial”. Como ser, no nosso
tempo, fiel à Aliança que celebrámos com Deus? Cada um, individualmente, e a
Igreja, como expressão do testemunho visível e público de cada um congregado
com os seus irmãos na fé. Este foi o grande desafio que levou Lutero e Calvino,
no tempo em que viveram, a mudarem as suas vidas e a pregarem e escreverem o
que ainda hoje podemos ler. A Reforma é uma história humana (e, claro,
auxiliada pela graça) de procura da fidelidade. E permanece, como bem intuiu Lutero,
uma procura do significado mais verdadeiro da cruz de Cristo, um caminho cujas
pegadas continuamos, de olhos postos na face e no corpo humano do nosso Deus –
fidelidade, intensa fidelidade e até ao fim.