quarta-feira, junho 12, 2013

Um sinónimo de Reforma? Fidelidade!

[Grão de Trigo, Out. 2012, pp. 4-5]

Na apreciação que fazemos daqueles que nos antecederam na fé há dois tipos de atitude que devemos evitar: aquilo que C. S. Lewis chamava “snobismo cronológico” (quando julgamos que somos mais inteligentes e “avançados” do que os nossos antepassados) ou a atitude de veneração desses antepassados quase como se fossem semideuses (por os considerarmos mais próximos de Deus do que nós próprios podemos hoje estar). Ora, Deus está a igual distância de todos os séculos – e, portanto, dos homens do passado, do presente e (o que é mais difícil de entender) do futuro. Pensemos nisto: haverá épocas históricas em que a graça de Deus é mais intensa do que noutras? Creio que não.

Estas reflexões vêm a propósito do dia da Reforma, em que comemoramos a atitude e a ação de (re)afirmação da fé evangélica por muitos antepassados nossos, com destaque para os chamados reformadores do século XVI (Lutero, Calvino, Melâncton, Bullinger). Segundo o Dicionário da Língua Portuguesa da Academia das Ciências de Lisboa, um dos significados da palavra “protesto” é “afirmação feita de modo convicto e insistente” e é deste significado (e não de “reclamar contra qualquer coisa”) que deriva o nome de “protestante” que foi dado àqueles reformadores e a quem com eles concordava. Estes reformadores foram chamados “protestantes” porque afirmaram convicta e insistentemente que havia uma forma correta de entender o Evangelho – aquela que Lutero resumiu nas famosas “cinco solas” (só a Deus glória; somente Cristo; só a Graça; só a Fé; só a Escritura).

Ao comemorarmos o dia da Reforma estamos a atualizar essa adesão aos princípios convicta e insistentemente afirmados no século XVI pelos reformadores protestantes. Esses princípios foram explicados em numerosos e, nalguns casos, longos textos escritos pelos reformadores daquele século. Esses textos ensinaram as gerações seguintes de protestantes (ou cristãos reformados) sobre a forma correta de entender o Evangelho e constituem, por isso, um ensinamento sobre a fé ou um “magistério”. Por isso se chama “Reforma Magisterial” ao conjunto daqueles textos e às atitudes e escolhas por eles inspirados. Ao contrário do que muitas vezes dizem os detratores da Reforma, os textos dos reformadores não foram nem quiseram ser “criativos” ou inovadores, pois são uma leitura refletida, pensada, sobre a Bíblia e sempre em diálogo com os principais autores cristãos de vários séculos, começando pelos da chamada Patrística (teólogos dos séculos I a IV).

Para os reformadores, a Reforma era uma purificação. A Igreja precisava de ser reformada para ser Igreja e não para ser outra coisa; precisava de ser reformada para ser o que fora no início e não para ser uma coisa “nova”. Quem inovava era quem pensava que a tradição dos homens (os hábitos sedimentados ao longo dos anos e dos séculos) podia ombrear em verdade e legitimidade com o Evangelho, com os episódios da Revelação que o anunciaram no Antigo Testamento e com os textos do Novo Testamento que entraram no Cânone como os seus melhores e mais inspirados relatos e interpretações. O propósito dos reformadores era restaurar, reatar e fazer reviver a Igreja. Como disse um autor inglês do século XVIII, somos protestantes por sermos zelosos e não por sermos indiferentes.

A esta luz, o que são ou o que devem ser para nós os reformadores do século XVI? A “Reforma Magisterial” não é um “Novíssimo Testamento” que se acrescente ao Antigo e ao Novo. A obra literária e eclesial dos reformadores do século XVI (que inclui as confissões e catecismos então elaborados) não pretendeu acrescentar uma vírgula ao que já fora revelado ou ao que já estava no Cânone. Não pretendia sequer instaurar um género de interpretação exclusiva dos Textos Sagrados, como acusaram hipocritamente alguns autores que aceitaram e aceitam a interpretação exclusiva e, para alguns, infalível de papas e/ou concílios (por mais “ecuménicos” que sejam).

A Reforma reafirmou a soberania de Deus, omnipotente, omnipresente e omnisciente, e a qualidade da Bíblia como regra de fé e único ponto de apoio para compreendermos o lugar de Cristo na relação que temos com Deus. Deus não se adapta às nossas necessidades e conveniências para se tornar menos omnisciente e mais moldável às nossas teorias mundanas sobre a liberdade do ser humano. Ao contrário do que vêm repetindo há séculos os detratores da Reforma, se a omnisciência de Deus e a liberdade humana (necessária aos atos morais) parecem incompatíveis é porque a nossa razão é limitada e não porque Deus não possa conhecer perfeitamente o futuro de cada um de nós até à consumação dos tempos. E, se afirmamos a falibilidade da razão humana perante a Bíblia, nunca foi, desde os reformadores do século XVI, para concluir (como vêm dizendo os nossos detratores) que a razão não é o instrumento por excelência para lermos a Bíblia, mas sim que a devemos usar uma vida inteira com a humildade e o cuidado com que preservamos e cultivamos o que é frágil e escasso.

A Reforma foi, pois, um exercício de, nas nossas consciências individuais e na vida da Igreja, dar a Deus o que é de Deus e aos homens o que é dos homens. Deus é o Deus da Bíblia e não o Deus da razão. Para O compreendermos, temos de deixar operar a Sua graça por meio da leitura e do estudo (muito estudo) da Sagrada Escritura. O livre exame (a liberdade de todos lerem a Bíblia) é para cada um de nós um dever de humilde estudo para toda a vida e não um direito de súbita instrumentalização do Texto pela nossa soberba ou vontade de poder (o que fizeram os radicais que se aproveitaram da Reforma, mas também faziam e fazem os detratores da Reforma que diziam e dizem ser essa a consequência do livre exame). Por seu lado, a razão é uma faculdade humana, uma luz que nos foi dada por Deus, como tudo o que temos e somos; e como luz que pertence a seres imperfeitos, mortais e pecadores, a razão é intermitente, fraca e muito limitada, mas é o que temos de melhor em nós mesmos e, como nós mesmos, só cresce e frutifica auxiliada pela graça e num caminho de humilde e fiel procura.

A Reforma é fidelidade e não inovação. Somos chamados, acima de tudo, a ser fiéis. Fiéis como Abraão foi no monte do Templo; fiéis como Moisés foi no monte Sinai; fiéis, enfim e sobretudo, como o Jesus humano foi no monte de Gólgota. Porque nesse ponto central de toda a história da Salvação – a Paixão de Cristo que a sua cruz representa – está gravada com força inquebrantável e para sempre a fidelidade como nosso destino, nosso caminho e nossa redenção. Em Jesus, o homem foi fiel a Deus até ao fim, até ao limite das suas forças; e Deus foi fiel à promessa de nos proporcionar um salvador eficaz porque capaz de ser um mediador perfeito (divino e humano) como nenhum homem ou ser celestial poderia ser. Em Cristo, visto de baixo, a partir da nossa condição humana, temos um irmão capaz de rasgar, como pioneiro, o caminho da perfeita fidelidade; no Cristo eterno e celestial, como só o podemos ver pela graça e pela Revelação, temos o próprio Deus que se acercou de nós, fazendo-se um de nós, e revelando-nos “em verdade e em vida” o nosso propósito – o nosso destino, caminho e salvação.

Este é o grande e fundamental legado dos reformadores do século XVI e da sua “Reforma Magisterial”. Como ser, no nosso tempo, fiel à Aliança que celebrámos com Deus? Cada um, individualmente, e a Igreja, como expressão do testemunho visível e público de cada um congregado com os seus irmãos na fé. Este foi o grande desafio que levou Lutero e Calvino, no tempo em que viveram, a mudarem as suas vidas e a pregarem e escreverem o que ainda hoje podemos ler. A Reforma é uma história humana (e, claro, auxiliada pela graça) de procura da fidelidade. E permanece, como bem intuiu Lutero, uma procura do significado mais verdadeiro da cruz de Cristo, um caminho cujas pegadas continuamos, de olhos postos na face e no corpo humano do nosso Deus – fidelidade, intensa fidelidade e até ao fim.