[Grão de Trigo, Jun. 2011, pp. 3 e 8]
O dízimo é a décima parte de um rendimento, em
espécies ou em dinheiro. A primeira vez que surge na Bíblia é logo no livro de
Génesis (14:20) e associado à figura de Abraão. O primeiro dízimo foi, assim,
pago pelo nosso pai na fé e entregue a Melquisedeque, «sacerdote do Deus
altíssimo» antes da instituição do sacerdócio araónico e levítico e cujo nome
em hebraico (melech = rei, zedek = justiça) tem grande
significado. Nesta figura quase misteriosa de um «rei da justiça» a quem Abraão
paga o dízimo, e que é referida novamente no Salmo 110 e na Epístola aos
Hebreus, é difícil não ver a prefiguração de Jesus Cristo e do seu sacerdócio
eterno, consumado após a sua Paixão e Ressurreição. De facto, o Salmo 110
anuncia um rei-sacerdote «segundo a ordem de Melquisedeque», a que associa
David, e o autor de Hebreus claramente projecta em Jesus essa realeza
sacerdotal que era um dos símbolos religiosos mais fortes do Antigo Testamento.
Se a Nova Aliança está latente na Antiga e esta patente na Nova, então Abraão
pagou o primeiro dízimo a Deus por meio de um rei-sacerdote, para nós
prefiguração de Cristo, antes mesmo de Deus lhe prometer descendência (Gn
15:4).
Ainda em Génesis (28:22), o dízimo ressurge, agora como promessa e pela
boca de Jacó, associado à aliança com Deus e como sinal de gratidão e
compensação pelas graças recebidas do Altíssimo. O sentido aqui é que tudo
aquilo que geramos para nos sustentarmos é uma dádiva de Deus, a Quem devemos,
em sinal de gratidão, devolver a décima parte. Como se percebe no fim de
Levítico, com a instituição do sacerdócio histórico judaico, a décima parte de
todos os produtos agrícolas recolhidos passou a ser dada à tribo sacerdotal de
Levi, como se fosse entregue a Deus (Lv 27:30-34). Isto torna-se mais claro em
Números, onde o dízimo é mencionado como concessão a essa tribo pelo serviço
prestado ao povo no culto a Deus (18:21, 24 e 28). Em Deuteronómio (14:22 e
26:12), a entrega do dízimo aos sacerdotes devia tornar-se uma ocasião de
partilha dos crentes com os levitas e com os pobres, os órfãos, as viúvas e os
estrangeiros, que em conjunto comeriam uma porção; esta idealização alivia a
imagem do dízimo como tributo religioso e parece prefigurar agora o sagrado
convívio e a comunhão da Santa Ceia instituída por Jesus. Tanto em Neemias
(10:37) como pelo profeta Malaquias (3:8), o dízimo é visto como sinal de
obediência à Lei, cuja falta Malaquias considera mesmo um «roubo». Ao longo do
Antigo Testamento, o dízimo de Abraão institucionaliza-se, torna-se um preceito
da Lei, embora fosse possível olhá-lo como um sinal mais espiritual de acção de
graças ou de partilha sagrada.
No Novo Testamento, o dízimo só aparece numa
advertência de Jesus em Mateus 23:23 (= Lucas 11:42) – alertando os
fariseus para o formalismo vazio da sua prática, pagando a décima parte da
hortelã, do endro e do cominho e esquecendo a justiça, a misericórdia e a fé –
e em Hebreus 7:2, 9 com as referências já mencionadas a Abraão e a
Melquisedeque. Jesus não condena o dízimo, apenas realça o absurdo de a esse
acto exterior não corresponder uma atitude interior que o deveria motivar. Mas
a abolição ou inutilização do sacerdócio levítico pelo sacrifício de Jesus
Cristo na cruz necessariamente tornou o dízimo institucionalizado do Antigo Testamento
uma prática deslocada e anacrónica para os cristãos. Não há mais sacerdotes que
sacrifiquem ao Deus altíssimo; o véu do templo antigo rasgou-se e Jesus operou
em si mesmo o único sacrifício válido para sempre. Todos aqueles que o
confessam como o Cristo são sacerdotes e membros do novo povo eleito. A quem,
pois, haveríamos de pagar o dízimo?
Já não estamos sob a obrigação da Lei (o
dízimo institucionalizado), mas também Abraão não estava – e pagou-o. Abraão
entregou a Melquisedeque a décima parte do que tinha, num acto de motivação
espiritual e de decisão individual. Com esse acto, ancorava na sua vida a
aliança com Deus. Como Abraão, fora do jugo da Lei, também nós individualmente
somos chamados a actos exteriores que ancorem a nossa fé e explicitem o nosso
compromisso com Deus, dando graças sob a forma da devolução, como Jacó. Na Nova
Aliança, o dízimo já não é obrigação; é uma interpelação ao cristão sobre a
ancoragem da fé na sua vida, fortalecida por actos consequentes.
Post scriptum [O dízimo
na nossa história protestante]:
As igrejas protestantes instalaram-se em Portugal por iniciativa
particular. Isso contrastava com o que sucedera ao longo da história do nosso
país, em que a Igreja Católica se confundira com o Estado e em que os reis
foram quase sempre os patronos principais da sua estrutura, provendo os meios
necessários à sua manutenção. Diferente é a nossa história. As igrejas
protestantes, depois de um período de implantação, em que eram missões apoiadas
por igrejas estrangeiras irmãs mais vigorosas, tornaram-se comunidades
eclesiais que tinham de se bastar a si mesmas. Cabia, assim, aos seus membros
prover os meios necessários à sua manutenção. Onde a igreja oficial contava com
o braço forte do Estado, as igrejas protestantes alicerçavam-se no empenho e
nos recursos particulares dos seus membros. Por isso eram igrejas livres, no
melhor sentido da palavra, constituídas por cristãos que se reviam num
cristianismo livre porque alheio a dependências do poder político e daqueles
que não eram seus membros.
Os estatutos das igrejas protestantes mais antigas
no nosso país (chamadas «históricas»), como a nossa, previam que os membros
aceites na sua comunhão contribuíssem com uma quantia fixa mínima e que só
excepcionalmente (e temporariamente) fossem isentos dessa obrigação. Ser membro
implicava contribuir para as necessidades materiais da igreja. A Igreja
Evangélica Lisbonense, fundada em 1898, consagrou nos seus estatutos de 1915
(ainda em vigor) essa obrigação [artigo 5.º, 1.º]. Era e é uma forma de
responsabilização de cada membro, tornando a sua decisão de aderir mais
ponderada e reflectida porque implica disponibilizar à igreja uma parte daquilo
que, pelo trabalho, geramos para nos sustentarmos na vida de todos os dias. Só
há responsabilidade se formos capazes de um sacrifício e só há sacrifício se
estivermos empenhados. Logo, só havia e só há igrejas livres se autosustentadas
no empenho dos seus membros.
A esta contribuição dos membros da igreja
chamamos habitualmente «dízimo» por tradição bíblica. Sabemos que não se trata
exactamente do dízimo instituído na Lei mosaica (ver texto acima),
mas talvez não seja má ideia mantermos esse paralelo, mesmo que simbolicamente.
Interessa manter o seu espírito, sobretudo como aparece expresso no livro de
Génesis (14:20 e 28:22), embora não tenhamos necessariamente de o traduzir nuns
exactos 10%. Usando a nossa liberdade cristã e o sentido de responsabilidade
que lhe está associado, saberemos disponibilizar o que não penaliza excessivamente
outras obrigações sem, ao mesmo tempo, descurar a dignidade daquilo que em nome
do Senhor nos junta na mesma igreja aos nossos irmãos na fé.