Passaram no dia 1 de Novembro [de 1990] duzentos anos sobre a publicação em Londres das Reflexões sobre a Revolução em França, de Edmund Burke. E se a Revolução Francesa não se pode reduzir àquele dia de Julho de 1789 em que a Bastilha foi tomada, se ela dura pelo menos até Napoleão, então a data de 1 de Novembro de 1790 é certamente uma das paragens obrigatórias na revisitação do processo revolucionário francês inspirada pelo bicentenário.
O livro de Burke é quase universalmente tido como “a” reacção às transformações revolucionárias em França. Mas a palavra “reacção” contém a armadilha que pode conduzir à catalogação do livro e do autor como “reaccionários”, o que não é de todo exacto; este tique é de certo modo alimentado por determinados intelectuais anglo-saxónicos que, com grande pompa e exagero, fazem de Burke o pai de uma equívoca “ideologia conservadora”, que mais parece resultado de uma antologia literária que consequência de princípios definidos e universais como os do liberalismo – e isto em grande parte é aquilo que se passa com as variantes não marxistas do socialismo, que ninguém sabe definir para além de ideias vagas [...] como “solidariedade” ou “justiça social” . Longe, portanto, destes edifícios literários e da dicotomia conservador/progressista (ou direita/esquerda) – esta última pontualmente operacional, mas não fundamentalmente verdadeira –, as Reflexões de Burke merecem atenção pela importância histórica que tiveram e pela leitura estimulante que proporcionam.
As duas grandes preocupações do livro são, por um lado, a confrontação que Burke vê desenhar-se na França de 1789-90 entre o Estado de Direito e a lógica democrática da vontade popular e, por outro, o divórcio entre a classe política e os valores morais do Cristianismo. No primeiro caso, pode dizer-se que o autor diagnostica a grande contradição interna da Revolução Francesa, a qual, na teoria, consagra os direitos da liberdade individual, mas, na prática e nas ideias de muitos dos seus líderes, cria de facto condições para esta ser afogada à nascença. Isto porque, nas preocupações dos revolucionários, a democracia (ou o governo da vontade popular) acabou por se sobrepor ao liberalismo e à sua exigência de governo da lei; triunfou, afinal, um “governo comunitário” em que a vontade dos muitos ou dos mais se torna lei e não uma nova legalidade que garantisse a inviolabilidade da vida privada de cada indivíduo e a limitação das acções do Poder. E haviam sido precisamente estas garantias legais e liberais que a Gloriosa Revolução inglesa de 1688 e o seu Bill of Rights estabeleceram do outro lado do canal da Mancha, forçando o poder político inglês (também uma monarquia) a circular nos carris da legalidade e a não descarrilar para a tirania e o voluntarismo.
Ora, em França, o que acontecia era a passagem pura e simples de uma monarquia para uma democracia (ou, tendo em vista as limitações posteriores ao sufrágio com base nas posses dos indivíduos, uma oligarquia), mas em que, num caso e noutro, se mantinha o carácter absoluto do Poder. Burke observou, com razão, que o que importava não era acabar com o poder arbitrário de um (o rei) para o substituir pelo poder arbitrário da maioria ou dos seus representantes, mas garantir que governantes e governados estivessem sujeitos a regras legais universais – por isso, Burke apoiou a “Revolução” Americana, perfeitamente liberal, legalista e só depois democrata, e condenou a Revolução Francesa, furiosamente democrata, imperfeitamente liberal e não legalista. Viu ele ainda na destruição sistemática de todas as instituições antigas da França a criação de uma situação ainda mais perigosa para a liberdade do que a existente antes de 1789 porque, mesmo que imperfeitas e cheias de abusos, elas mantinham entre si um equilíbrio de poder essencial para a paz civil; mas o vazio então criado, alertava Burke, ia pôr a França à mercê de todos os aventureirismos sangrentos que se pudessem imaginar; daí que ele previsse logo em 1790, muito antes disso acontecer, o descambar da Revolução na anarquia e depois na ditadura (com os jacobinos e Napoleão). E não deixou também de prever que dificilmente a França se recomporia desse vazio de leis e instituições, o que hoje, à distância de dois séculos, é confirmado pela sua evolução política até aos nossos dias, com todos os seus golpes e contragolpes, regimes e constituições, contrastando com a vida política pacífica e deslizante da América e do Reino Unido.
A outra preocupação das Reflexões era o anticristianismo dos sectores mais radicais da Revolução. Burke não era partidário de grandes intimidades entre o Estado e a Igreja e, muito menos, de qualquer fundamentação religiosa do Poder (o que ele sabia ser contrário ao próprio Cristianismo); o que ele temia era que o Estado e os governantes se tornassem maquiavélicos, isto é, que perdessem o sentido moral inspirado pela piedade e humildade cristãs e maximizassem sem limites os interesses da política, até ao ponto de nada nem ninguém ser suficientemente sagrado para escapar às paixões e às vontades temporais. Assim, tão fundamentais eram as garantias legais da liberdade individual como o carácter sagrado que o Cristianismo confere à pessoa humana, pelo que Burke não chegava a dissociar as garantias temporais do liberalismo das garantias espirituais do Cristianismo.
O colorido de certas frases das Reflexões, o estilo por vezes gongórico nalgumas ideias expostas ou o romantismo de determinadas passagens, como o famoso parágrafo dedicado à rainha Maria Antonieta, onde Burke aproveitou o seu talento literário para dar mais sabor a uma obra com evidentes propósitos propagandísticos, não devem fazer esquecer o essencial daquilo por que o livro se batia. E, graças a ele, Burke ficou para a posteridade, não o pai ou o profeta de uma doutrina, mas um farol de bom senso tentando iluminar as costas acidentadas da política.
[Publicado no Diário de Notícias, 20.11.1990, supl. "DN Jovem".]