quinta-feira, julho 14, 2005

João Franco, um político "normal"


Que João Franco foi um político "normal" do período político anterior a 1910, nem especialmente de "direita" nem particularmente "autoritário", foi o que mostrou a melhor biografia política até hoje feita e aqui recenseada. Franco teve, no entanto, um grande "azar" histórico, que lhe afectou para sempre a memória que de si foi passada à posteridade: foi o político constitucional que, no princípio do século XX, mais afrontou a estratégia do republicanismo. E os herdeiros deste, após 1910 e depois na intelligentsia anti-salazarista, nunca lhe "perdoaram" isso. E a invenção de um "autoritário monárquico" em Franco nas vésperas do regicídio permitia criar uma justificação ideológica para esse crime e para o golpe de estado que, em 5 de Outubro de 1910, alterou um período de perfeita normalidade constitucional e liberdade civil e política.

Rui Ramos - João Franco e o fracasso do reformismo liberal (1884-1908), Lisboa: I.C.S., 2001, 222 p. [Recensão publicada em Nova Cidadania, ano III n.º 13 (Julho-Setembro 2002), pp. 69-71]

Nos últimos anos, o Prof. Rui Ramos, do Instituto de Ciências Sociais (I.C.S.) da Universidade de Lisboa, tem vindo a tecer uma interessante e original malha interpretativa sobre a crise e o colapso do liberalismo português no início do século XX. É uma tarefa complexa que, requerendo o conhecimento de um período que vai da Regeneração (1851) até ao advento do Estado Novo, exige do historiador o domínio de uma vastíssima documentação; mas a essa exigência o Prof. Ramos juntou a suficiente dose de iconoclastia para se furtar a percorrer o “caminho largo” das verdades feitas sobre o problema historiográfico da construção da liberdade civil e da sua crise no Portugal contemporâneo. Até agora, além de vários estudos mais parcelares, as duas etapas fundamentais desse labor foram A Segunda Fundação (1994, estudo “total” sobre o período charneira de 1890-1926) e a sua tese de doutoramento apresentada em Oxford em 1997, Liberal Reformism in Portugal, Oliveira Martins, the Movement for a New Life and the Politics of the Constitutional Monarchy 1885-1908. É neste âmbito que se situa o seu último livro publicado, sobre uma das mais controversas figuras políticas desse período de crise, João Franco (1855-1929).

Poucas figuras políticas podem tornar-se, como Franco, um ponto de observação tão pertinente para se deslindarem as linhas de força de uma crise que levou Portugal, há um século, a separar-se de uma experiência de oito décadas de liberdade civil construída e amadurecida sob a monarquia constitucional. Para se compreender o que de mais original e válido tem esta tentativa de interpretação da carreira política de João Franco, dever-se-á ter em mente que nos trabalhos do Prof. Ramos está plasmada uma aguda consciência de que a memória e o entendimento dessa experiência de liberdade civil tem sido prejudicada na cultura portuguesa pelo esquematismo ideológico simplificador dos “dois Portugais” (um país católico, reaccionário e autoritário, oposto a um país laico, progressivo e democrático). Tal visão, além de parcelar, é posterior e diz pouco sobre a sociedade portuguesa do século XIX, servindo apenas para transportar para o passado visões do mundo que, em grande medida, resultaram da desagregação de um Portugal liberal ainda hoje mal compreendido. Pelo contrário, o Prof. Ramos demonstra que a pacificação política alcançada com a Regeneração de 1851, sob o formato conciliatório da Carta Constitucional, almejou enquadrar o amplo espectro das elites portuguesas (clero, aristocracia, intelectuais, funcionalismo público, empresários, grupos sociais emergentes) sob o mesmo regime político e favoreceu mesmo, ao longo de toda a segunda metade do século XIX, o predomínio de uma cultura de convivência do “velho” e do “novo”, da “ordem” e do “progresso”: a monarquia transformada em poder moderador, a Igreja estabelecida “domesticada” e controlada pelo Estado, uma aristocracia e um episcopado enquadrados na instituição do pariato, um protagonismo crescente de partidos e líderes políticos crentes nas virtudes da industrialização e do desenvolvimento das vias de comunicação, da instrução, do associativismo e do progressivo enquadramento na vida política dos sectores sociais dela ainda excluídos.

Mas este arranjo, dadas as fragilidades da sociedade portuguesa, era vulnerável e atravessou várias crises (1868-1871, 1876, 1890-1892) que deram alento – mais do que aos seus adversários herdeiros do miguelismo – ao radicalismo democrático (primeiro setembrista, depois republicano) que contestava os compromissos do cartismo. Ora, um dos aspectos importantes para o qual o Prof. Ramos chama atenção é que estes críticos radicais não só foram em geral atraídos para dentro do sistema político “cartista” (Fontes Pereira de Melo tivera uma estratégia deliberada de os atrair), como foram influenciando a própria cultura política dominante, que se foi radicalizando: o anticlericalismo, as críticas frequentes ao papel moderador do Rei, a ideia de democratização radical do sistema representativo, o acolhimento de um papel cada vez mais interventivo do Estado na economia, o mito de grandes reformas “moralizadoras”, tudo isto era parte integrante do mainstream político-ideológico português na transição do século XIX para o século XX. No presente livro, o Prof. Ramos conclui que a figura de João Franco só pode ser entendida como a de um homem completamente formado dentro deste ambiente ideológico; nesse sentido, o autor demonstra que o paradigma reformista de Franco, longe de ser o projecto autocrático que lhe atribuíram a posteriori os seus inimigos (e a propaganda republicana), era o da Regeneração de 1851. Ou seja, tal como Fontes décadas antes, Franco queria evitar uma ruptura do sistema político, enquadrando no regime os seus críticos radicais e acolhendo e “domesticando” grande parte do seu projecto político, de modo a impedi-lo de romper os compromissos entre o “velho” e o “novo”, a “ordem” e o “progresso” e a mergulhar Portugal num clima de guerra civil ideológica; e isso era, no fundo, o que almejava grande parte das personalidades, imprensa e associações radicais (no seu conjunto pomposamente denominadas “partido republicano”), de modo a poder criar-se um ambiente de tensão que conduzisse a uma situação revolucionária e às mudanças radicais sonhadas. A crise financeira de 1891 e a estagnação económica que se lhe seguiu não criaram as melhores condições de resposta aos problemas de uma sociedade em acelerado crescimento demográfico e que, apesar dos altos índices de emigração, tornavam cidades como Lisboa autênticos barris de pólvora no princípio do século XX. A margem de manobra dos políticos reformistas reduziu-se muito e Franco foi simplesmente, de entre esses, aquele que esteve mais próximo de poder concretizar essa via, brutalmente interrompida pelo regicídio. A propósito disto, o Prof. Ramos clarifica também que Franco sempre contou apenas com a confiança (não absoluta) de D. Carlos I e que a sua curta “ditadura” só teve esse nome por ter dispensado durante alguns meses umas Cortes dominadas pela oposição, sem que as liberdades civis ou mesmo os fundamentos constitucionais do Estado tenham sido realmente comprometidos (este tipo de “ditaduras constitucionais” foi frequente antes e depois de 1910).

Esta releitura do percurso político de João Franco, proposta pelo Prof. Ramos, tem uma dupla utilidade: por um lado, ajuda-nos a situar melhor o significado da mudança de regime em 1910; por outro, convida-nos a reler a nossa história política contemporânea. No primeiro caso, torna-se evidente que a proclamação da república foi um acidente de percurso numa vida política atribulada e que só o regicídio a tornou, para parte substancial da classe política de então, uma via de desbloqueamento com alguma razoabilidade; mas tal solução resultou mais de factores e de alinhamentos de força conjunturais (sobretudo no Verão e Outono de 1910) do que de qualquer “evolução estrutural” que a tornasse inevitável. No segundo caso, o falhanço de um projecto reformista (ou neo-regenerador) como o de Franco, patrocinado por D. Carlos I, aparece claramente como a última oportunidade que houve em Portugal de evitar o fim do compromisso histórico que garantira, durante várias décadas, a sobrevivência de um regime de liberdade civil e governo parlamentar. A via radical que triunfou em Outubro de 1910 rompeu esse compromisso e criou as condições para opor, cada vez mais violentamente, o “velho” e o “novo”, a “ordem” e o “progresso”; e isso fez da I República, como é hoje evidente, não a experiência de aprofundamento da liberdade e da democracia sonhada pelos radicais, mas a experiência de decomposição das condições da liberdade civil e do parlamentarismo prevista pelos liberais.