terça-feira, julho 12, 2005

Os verdadeiros Depósitos da Fé



I Cor 15:3-5 [«3 Porque primeiramente vos entreguei o que também recebi: que Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras, 4 E que foi sepultado, e que ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras, 5 E que foi visto por Cefas, e depois pelos doze.»]

O Querigma e os testimonia (segundo C. H. Dodd)

A formulação pré-teológica da fé cristã no Querigma, tal como aqui apresentada por São Paulo e problematizada por C. H. Dodd (Segundo as Escrituras: Estrutura Fundamental do Novo Testamento, Ed. Paulinas), dá pleno sentido ao dito antigo "Novum Testamentum in Vetere latet, Vetus in Novum patet". C. H. Dodd põe em evidência no seu estudo (Op. Cit., pp. 25-58) as relações directas entre as passagens inspiradoras do Antigo Testamento para a explicitação do Querigma no Novo Testamento; eis a sua lista de testimonia:

tI. Sl 2:7 («Tu és meu filho; eu hoje te gerei!») --- At 13:33 («Como também está escrito no salmo segundo: Meu filho és tu, hoje te gerei.»); Hb 1:5 e 5:5; Mc 1:11 («E ouviu uma voz dos céus, que dizia: Tu és o meu Filho amado em quem me comprazo.»); Lc 3:22 («E o Espírito Santo desceu sôbre êle em forma corpórea, como uma pomba; e ouviu-se uma voz do céu, que dizia: Tu és o meu filho amado, em ti me tenho comprazido.»).
Obs.: testimonium da messianidade de Jesus.

tII. Sl 8:5-7 («O que é o homem, para que dele te lembres? Ou o filho do homem, para que o visites? Fizeste-o, por um pouco, menor que os anjos, de glória e de honra o coroaste; tu o estabeleceste sobre a obra de tuas mãos; e todas as coisas colocaste debaixo de seus pés.») --- Hb 2:6-8; 1Cor 15:27 («Porque tôdas as cousas sujeitou debaixo de seus pés. Mas, quando diz que tôdas as cousas lhe estão sujeitas, claro está que se exceptua aquele que lhe sujeitou tôdas as cousas.»); Ef 1:22 («E sujeitou tôdas as cousas a seus pés, e sôbre tôdas as cousas o constituiu como cabeça da igreja»); Fl 3:21 («Que transformará o nosso corpo abatido, para ser conforme o seu corpo glorioso, segundo o seu eficaz poder de sujeitar também a si tôdas as cousas.»); 1Pd 3:22 («O qual está à dextra de Deus, tendo subido ao céu: havendo-se-lhe sujeitado os anjos, e as autoridades, e as potências.»); Ap 5:12 («Que com grande voz diziam: Digno é o Cordeiro, que foi morto, de receber o poder, e riquezas, e sabedoria, e fôrça, e honra, e glória, e acções de graças.»).
Obs.: citado para demonstrar que até mesmo a morte será submetida a Cristo e, através Dele, será vencida pelos que estiverem Nele.

tIII. Sl 110:1 («O Senhor disse a meu senhor: Senta-te à minha direita até que eu faça de teus inimigos escabelo de meus pés!») --- At 2:34-35 (ver hIX); Mc 12:36 («O próprio David disse pelo Espírito Santo: O Senhor disse ao meu Senhor: Assenta-te à minha direita até que eu ponha os teus inimigos por escabêlo dos teus pés.»); Hb 1:13; Mc 14:62 («E Jesus disse-lhe: Eu o sou, e vereis o Filho do homem assentado à direita do poder de Deus, e vindo sôbre as nuvens do céu.»); At 7:55 («Mas êle, estando cheio do Espírito Santo, fixando os olhos no céu, viu a glória de Deus, e Jesus, que estava à direita de Deus»); Rm 8:34 («Quem os condenará? Pois foi Cristo quem morreu, ou antes quem ressuscitou de entre os mortos, o qual está à direita de Deus, e também intercede por nós.»); Ef 1:20 («Que manifestou em Cristo, ressuscitando-o dos mortos, e pondo-o à sua direita nos céus.»); Cl 3:1 («Portanto, se já ressuscitastes com Cristo, buscai as cousas que são de cima, onde Cristo está assentado à dextra de Deus.»); Hb 1:13, 1:3, 8:1, 10:12, 12:2; 1Pd 3:22 («O qual está à dextra de Deus, tendo subido ao céu: havendo-lhe sujeitado os anjos, e as autoridades, e as potências.»).

tIV. Sl 118:22-23 («A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a pedra angular; pelo Senhor foi feito isso, e é maravilha aos nossos olhos.» --- Mc 12:10-11 («10 Ainda não lêstes esta Escritura: A pedra, que os edificadores rejeitaram, esta foi posta por cabeça da esquina; 11 Isto foi feito pelo Senhor e é cousa maravilhosa aos nossos olhos?»); 1Pd 2:7 («E assim para vós, os que credes, é preciosa, mas, para os rebeldes, a pedra que os edificadores reprovaram essa foi a principal da esquina»); At 4:11 («Êle é a pedra que foi rejeitada por vós, os edificadores, a qual foi posta por cabeça de esquina.»).

tV. Is 6:9-10 («Ouvireis sempre, mas não compreendereis; vereis sempre, mas não entendereis. Obceca o coração desse povo, ensurdece-lhe o ouvido, fecha-lhe os olhos, de modo que não veja nada com seus olhos, não ouça com seus ouvidos, não compreenda nada com seu espírito e não se convertam e lhes venha a salvação.») --- Mt 13:14-15; At 28:25-27 («E, como ficaram entre si discordes, se despediram, dizendo Paulo esta palavra: Bem falou o Espírito Santo a nossos pais pelo profeta Isaías» + hXI); Jo 12:40 («Cegou-lhes os olhos, e endureceu-lhes o coração, a fim de que não vejam com os olhos, e compreendam no coração, e se convertam e eu os cure.»); Mc 4:12 («Para que, vendo, vejam e não percebam; e, ouvindo, ouçam, e não entendam; para que se não convertam, e lhes sejam perdoados os pecados.»); Lc 8:10 («E êle disse: A vós vos é dado conhecer os mistérios do reino de Deus, mas aos outros por parábolas, para que, vendo, não vejam, e, ouvindo, não entendam.»); etc.
Obs.: há diferenças de tradução nos diversos autores do N.T., o que atesta serem citações independentes com origem em tradição comum de leitura do A.T.

tVI. Is 53:1 («Quem acreditou em nossa revelação? E o braço do Senhor, a quem foi revelado?») --- Jo 12:38 («Para que se cumprisse a palavra do profeta Isaías, que diz: Senhor quem creu na nossa prègação? e a quem foi revelado o braço do Senhor?»); Rm 10:16 («Mas nem todos obedecem ao evangelho; pois Isaías diz: Senhor, quem creu na nossa prègação?»).

tVII. Is 40:3-5 («Voz de alguém que grita no deserto: -- Preparai o caminho do Senhor, aplanai as veredas do nosso Deus. Todo vale será aterrado e todo monte ou colina será abaixada; as vias sinuosas serão rectas, os caminhos acidentados serão nivelados, e a glória do Senhor aparecerá e toda a carne verá a salvação do nosso Deus.») --- Lc 3:4-6 («4 Segundo o que está escrito no livro das palavras do profeta Isaías, que diz: Voz do que clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor; endireitai as suas veredas. 5 Todo o vale se encherá, e se abaixará todo o monte e outeiro; e o que é tortuoso se endireitará, e os caminhos escabrosos se aplanarão; 6 E tôda a carne verá a salvação de Deus.»); Mt 3:3; Mc 1:3 («Voz do que clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas.»); Jo 1:23 («Disse: Eu sou a voz do que clama no deserto: Endireitai o caminho do Senhor, como disse o profeta Isaías.»); etc.

tVIII. Is 8:14 («Eis-me, eu “ponho” uma pedra em Sião, uma pedra escolhida, angular, preciosa, (...) para alicerce; quem nela crê não “vacilará”.») e 28:16 («uma pedra de tropeço e rocha de escândalo») --- 1Pd 2:6-8 («6 Pelo que também na Escritura se contém: Eis que ponho em Sião a pedra principal da esquina, eleita e preciosa: e quem nela crer não será confundido. 7 E assim para vós, os que credes, é preciosa, mas, para os rebeldes, a pedra que os edificadores reprovaram essa foi a principal da esquina; 8 E uma pedra de tropêço e rocha de escândalo, para aqueles que tropeçam na palavra, sendo desobedientes; para o que também foram destinados.»); Rm 9:33 («Como está escrito: Eis que eu ponho em Sião uma pedra de tropêço, e uma rocha de escândalo; e todo aquele que crer nela não será confundido.»).
Obs.: Indício claro que a “pedra” a que Jesus se refere no diálogo com Pedro é Ele próprio (“sobre esta pedra”) e não o apóstolo; pelo que caem por terra as especulações em torno da pretensa autoridade especial conferida a Pedro.

tIX. Gn 12:3 («Em ti serão abençoadas todas as tribos da terra») e 22:18 («Em tua posteridade serão abençoadas todas as nações») --- At 3:25 («Vós sois os filhos dos profetas e do concerto que Deus fez com nossos pais, dizendo a Abraão: Na tua descendência serão bemditas tôdas as famílias da terra.»); Gl 3:8.
Obs.: importância para pregação do Evangelho aos gentios.


tX. Jr 31:31-34 («Dias virão, diz o Senhor, nos quais concluirei com a casa de Israel e com a casa de Judá uma nova aliança. Não como a aliança que fiz com os pais deles, no dia que os conduzi pela mão, para fazê-los sair da terra do Egipto. Pois eles mesmos não mantiveram a minha aliança: por isso não me interessei por eles, diz o Senhor. Eis a aliança que farei com a casa de Israel depois daqueles dias, diz o Senhor: Colocarei minhas leis na sua mente, e as inscreverei no seu coração; e eu serei o seu Deus, e eles serão o meu povo. Ninguém mais ensinará o seu próximo, e nem o seu irmão, afirmando “Conhece o Senhor!” Porque todos hão de me conhecer, do menor até ao maior. Porque terei misericórdia das suas faltas, e não me lembrarei mais dos seus pecados.») --- Hb 8:8-12; 2Cor 3:6-14 («6 O qual nos fez também capazes de ser ministros dum novo testamento, não da letra, mas do espírito; porque a letra mata, e o espírito vivifica. 7 E, se o ministério da morte, gravado com letras em pedras, veio em glória, de maneira que os filhos de Israel não podiam fitar os olhos na face de Moisés, por causa da glória do seu rosto, a qual era transitória, 8 Como não será de maior glória o ministério do espírito? 9 Porque, se o ministério da condenação foi glorioso, muito mais excederá em glória o ministério da justiça. 10 Porque também o que foi glorificado nesta parte não foi glorificado, por causa desta excelente glória. 11 Porque, se o que era transitório foi para glória, muito mais é em glória o que permanece. 12 Tendo, pois, tal esperança, usamos de muita ousadia no falar. 13 E não somos como Moisés, que punha um véu sôbre a sua face, para que os filhos de Israel não olhassem firmemente para o fim daquilo que era transitório. 14 Mas os seus sentidos foram endurecidos: porque até hoje o mesmo véu está por levantar na lição do velho testamento, o qual foi por Cristo abolido»); 1Cor 11:25 («Semelhantemente também, depois de cear, tomou o cálix, dizendo: Êste cálix é o Novo Testamento do meu sangue: fazei isto, tôdas as vezes que beberdes, em memória de mim.»); Lc 22:20 («Semelhantemente tomou o cálix, depois da ceia, dizendo: Êste cálix é o Novo Testamento no meu sangue, que é derramado por vós.»); Mt 26:28; etc. Obs.: 1Cor 11:25 descreve o Cálice da Eucaristia como “nova aliança no meu sangue”, o que sugere as implicações litúrgicas precoces deste testimonium (Paulo alude inclusivamente a ter recebido esta tradição interpretativa, o que a tornaria mais antiga e não especificamente paulina).

tXI. Jl 2:28-32 («Depois disso acontecerá que eu derramarei meu espírito sobre toda a carne; vossos filhos e filhas profetizarão, vossos velhos hão de ter sonhos e vossos jovens terão visões; e sobre meus servos e servas naqueles dias derramarei meu espírito. E farei prodígios no céu e na terra: sangue, fogo e vapor de fumaça. O sol se transformará em trevas e a lua em sangue, antes que venha o grande e glorioso dia do Senhor. E acontecerá que todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo. Porque sobre o monte Sião e em Jerusalém haverá um homem salvo e lá haverá homens para pregar o Evangelho aos que o Senhor tiver chamado.») --- At 2:17-21 (ver hVII) e 39 («Porque a promessa vos diz respeito a vós, a vossos filhos, e a todos os que estão longe: a tantos quantos Deus nosso Senhor chamar.»); Rm 10:13 («Porque todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo.»); Lc 21:25 («E haverá sinais no sol e na lua e nas estrêlas; e na terra angústia das nações, em perplexidade pelo bramido do mar e das ondas»); Mc 13:24 («Ora, naqueles dias, depois daquela aflição, o sol se escurecerá, e a lua não dará a sua luz.»); Ap 9:2 («E abriu o poço do abismo, e subiu fumo do poço, como o fumo de uma grande fornalha, e com o fumo do poço escureceu-se o sol e o ar.»).
Obs.: o “homem salvo” é Jesus?

tXII. Zc 9:9 («Exulta intensamente, filha de Sião, rejubila, filha de Jerusalém. Eis que teu rei vem a ti: justo e vitorioso; humilde e vem montado num jumento, num potro, filho de uma jumenta.») --- Mt 21:5; Jo 12:15 («Não temas, ó filha de Sião; eis que o teu Rei vem assentado sôbre o filho de uma jumenta.»). tXIII. Hab 2:3-4 («Sem dúvida virá e não tardará. Se alguém se esquiva, minha alma não se compraz nele, mas o justo viverá pela minha fé.») --- Hb 10:37-38; Mt 6:6; Rm 1:17 («Porque nêle se descobre a justiça de Deus de fé em fé, como está escrito: Mas o justo viverá da fé.»); Gl 3:11 («E é evidente que pela lei ninguém será justificado diante de Deus, porque o justo viverá pela fé.»).
Obs.: testimonium da vinda de Cristo.


tXIV. Is 61:1-2 («O espírito do Senhor está sobre mim porque me ungiu. Enviou-me para anunciar a boa nova aos pobres, curar os corações doloridos, proclamar a libertação aos prisioneiros, e aos cegos a recuperação da vista; e para pregar o ano de graças da parte do Senhor.») --- Lc 4:18-19 («18 O Espírito do Senhor é sôbre mim, pois que me ungiu para evangelizar os pobres, enviou-me a curar os quebrantados do coração»); At 10:38 («Como Deus ungiu a Jesus de Nazaré com o Espírito Santo e com virtude; o qual andou fazendo bem, e curando a todos os oprimidos do diabo, porque Deus era com ele.»); Mt 11:5; Lc 7:22 («Respondendo-lhe então Jesus, disse-lhes: Ide, e anunciai a João o que tendes visto e ouvido: que os cegos vêem, os coxos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e aos pobres anuncia-se o Evangelho.»); Mt 5:4.
Obs.: reparar como as palavras “pobres”, “corações doloridos”, “prisioneiros” e “cegos” só podem ser metafóricas.

tXV. Dt 18:15-19 («O Senhor, teu Deus, fará surgir para ti, dentre os teus irmãos, um profeta semelhante a mim: é a ele que devereis ouvir. (...) se alguém não der ouvidos às minhas palavras, que ele dirá em meu nome, pedir-lhe-ei contas disso.») --- At 3:22-23 («22 Porque Moisés disse: O Senhor vosso Deus levantará de entre vossos irmãos um profeta semelhante a mim: e êle ouvireis em tudo quanto vos disser. 23 E acontecerá que tôda a alma que não escutar êsse profeta será exterminada de entre o povo.»); At 7:37 ( = comentário At 7:2-53 supra). Obs.: Cristo é o profeta “semelhante” a Moisés e que deve ser escutado .

O Novo Testamento

O estudo do Querigma como embrião a partir do qual se desenvolve o Novo Testamento, chama atenção para o próprio estatuto das Escrituras para os cristãos: o que são elas? De acordo com o estudo de Dodd, partindo elas de uma tradição oral que originou numa pluralidade de autores uma pluralidade de escritos, só depois reunidos num Cânone, elas não podem ser vistas como a palavra literal de Deus, mas antes como obras humanas testemunhando uma experiência de fé ou a proximidade com o Messias (no caso dos quatro evangelhos), não nos devendo repugnar ter, perante elas, alguma capacidade de distanciamento (o contrário, sim, poderia ser perigoso para a fé no Deus encarnado que nada escreveu).

O carácter historicamente construído da Bíblia leva-nos a estar conscientes que ela em si não pode ser venerada, devendo ser entendida como um repositório de testemunhos originais e particulares de experiências que a todos é dado repetir (reviver) ou desenvolver; por muito fraco que julguemos ser esse elo de memória escrita e humana sobre o Deus revelado (elo historicamente composto e recomposto como toda a linguagem), não podemos forçá-lo a ser mais do que é sob perigo de ofendermos a Deus, cairmos em idolatria e esquecermos que a natureza da Escritura está de acordo com a nossa própria natureza humana .

A importância do estudo de Dodd é mostrar que o núcleo da Revelação se deve deslocar da Escritura (tradicional vício protestante) para aquilo que ela proclama, isto é, para o Querigma; e, a partir deste, Dodd vai mais longe, sugerindo – de modo muito convincente e em extremo pertinente – que a leitura do Antigo Testamento à luz do conteúdo do Querigma pode (e quiçá deve) ser atribuído ao próprio Príncipe da Paz:

«É impossível dizer quais são os génios anónimos escondidos na sombra daqueles primeiros vinte anos de história da Igreja, sobre os quais temos tão poucas informações. Mas o Novo Testamento declara que foi o próprio Jesus quem, primeiramente, orientou a atenção dos seus discípulos para algumas partes da Escritura, nas quais poderiam encontrar a chave para compreenderem o significado da sua missão e do seu destino. Podemos duvidar – e legitimamente – que Cristo lhes tenha apresentado um esquema global de interpretação bíblica, como se narra em Lc. 24:25-27 e 44-45; mas não vejo nenhum motivo razoável para rejeitar as afirmações dos evangelhos segundo as quais, por exemplo, ele teria indicado no Sl. 110 um guia para a exacta compreensão da sua missão e da sua vida, mais válido que as crenças populares sobre o Filho de David. Ele próprio terá feito aquela aproximação entre o “Senhor” à direita de Deus e o Filho do Homem de Daniel, que depois se revelou tão importante para o pensamento cristão; além disso, foi quem associou ao Filho do Homem a linguagem que fora usada a propósito do Servo do Senhor, com a intenção de evidenciar o sentido e o resultado final da sua morte próxima. Para explicar o nascimento deste originalíssimo e fecundo processo de releitura do A.T., julgamos necessário postular uma mente criadora. Os evangelhos propõem-nos uma. Somos talvez obrigados a rejeitar esta proposta?» (Dodd, Op. Cit., pp. 106-107).

Além do Querigma, duas outras questões são muito importantes: a do Cânone do Novo Testamento e da formulação para-teológica do Credo definido no concílio de Niceia em 325. No que diz respeito ao Cânone, os principais autores que contribuíram para a sua formação foram: Marcião (c.85-c.160), que rejeitou Mateus, Marcos e João e aceitou Lucas e as epístolas de Romanos a 2 Tessalonicences, bem como Filémon; o Cânone de Muratori (c. 200), que aceitou todos os livros de Mateus a Filémon, bem como Judas e Apocalipse, tendo informação inconclusiva quanto às três epístolas de João; Ireneu de Lyon (c.130-c.200), que aceitou todos os textos de Mateus a Tito, bem como 1 Pedro, as duas primeiras epístolas de João e Apocalipse, tem informação inconclusiva quanto a Filémon e discute Hebreus; Tertuliano (c.160-c.225), que aceitou todos os textos de Mateus a Filémon, bem como as primeiras epístolas de Pedro e João, Judas e o Apocalipse, autoriza mas considera não-canónica Hebreus; Orígenes (c.185-c.254), que aceita todos os textos de Mateus a Filémon, bem como as primeiras epístolas de Pedro e João e o Apocalipse, discutindo Hebreus, Tiago, restantes epístolas de Pedro, João e Judas; Eusébio (c.260-c.340), que aceitou todos os textos de Mateus a Filémon, bem como as primeiras epístolas de Pedro e João, aceitando Hebreus embora considerando as objecções de outros e discutindo Tiago, as restantes epístolas de Pedro e João, Judas e Apocalipse. Outros livros discutidos por estes autores e que vieram a ficar excluídos do Cânone: Pastor de Hermas (considerado autorizado mas não-canónico pelo Cânone de Muratori e por Orígenes, aceite por Ireneu, discutido por Tertuliano e rejeitado por Eusébio); Apocalipse de Pedro (aceite mas considerado não-canónico pelo Cânone de Muratori e rejeitado por Eusébio); o deuterocanónico Sabedoria de Salomão (aceite pelo Cânone de Muratori); Didakhé (autorizado mas considerado não-canónico por Orígenes e rejeitado por Eusébio); Epístola de Barnabé (autorizada mas considerada não-canónica por Orígenes e rejeitada por Eusébio); e os Actos de Paulo (rejeitado por Eusébio).

Atanásio (c.296-373) foi o primeiro a aceitar todos os livros do actual Cânone, excluindo os restantes (cf. Depois de Jesus: O Triunfo do Cristianismo, Lisboa: Selecções do Reader’s Digest, 1995, p. 160). Sobre o Cânone, diz Paul Johnson (A History of Christianity, Harmondsworth: Penguin, 1990, p. 55):

«In general, the determining figure in the evolution of the Canon was Eusebius, whose object was to associate as closely as possible the actual teaching and structure of the Church with its documentary credentials; after his death, useful documents he had considered doubtful were accepted as canonical, the process being virtually completed by 367, when Anasthasius gave a list in his Easter Letter».

Há aqui a observar dois aspectos importantes: primeiro, que Hebreus é discutida por Orígenes e aceite embora como não-canónica (só por não ser de Paulo?) por Eusébio, enquanto o Apocalipse é aceite por Orígenes e discutido por Eusébio – por seu lado, Atanásio vem a aceitar ambos os textos como canónicos (de acordo com Altaner e Stuiber, Patrologia, Ed. Paulinas, p. 280), excluindo do Cânone do Antigo Testamento os livros deuterocanónicos; segundo, que o Cânone vem a constituir-se antes do segundo concílio ecuménico em 381 (Constantinopla, no qual esteve em causa a divindade do Espírito Santo), realizado já depois da morte de Eusébio e Atanásio.

O Concílio de Niceia

Como o próprio Dodd sugere, o Credo, preservado na liturgia de Igrejas como a Romana ou a Anglicana, decorre da formulação pré-teológica da fé cristã no Querigma. Ele é uma reformulação histórica, em grande medida uma precisão do Querigma, em que está depositada a verdadeira grande tradição da Igreja católica (universal) e apostólica a que o próprio enunciado do Credo se refere e à luz da qual se codificaram (no Cânone), recebemos e lemos as Escrituras (e a sua proclamação do Querigma). É importante reparar que uma doutrina como a da Santíssima Trindade não está explicitamente contida no Credo – embora se possa defender que o está implicitamente (tanto quanto, por exemplo, no capítulo 14 do Evangelho segundo S. João) – ou que ele nada contém que suporte uma doutrina como a da imortalidade incondicional (já que, claramente, fala apenas na ressurreição dos mortos aquando da Segunda Vinda de Cristo).

A cristologia neotestamentária, que a comparação de diferentes passagens dos textos canónicos parece por vezes sugerir ser contraditória, é clarificada no Credo e de uma forma que encontra suporte em várias passagens das Escrituras – assim, o Credo é um esforço histórico de interpretação de conjunto dessas passagens mas que, definindo a consubstancialidade de Jesus Cristo e do Pai, não vai ao ponto de elaborar nenhuma doutrina trinitária explícita (a introdução posterior da expressão filio que no Credo, embora eu tenda a aceitá-la, é problemática se atendermos a que o mesmo Credo diz que Jesus Cristo encarnou “pelo Espírito Santo”, parecendo ser difícil poder encarnar através de Quem Dele também procede; em todo o caso, o Credo estabelece o Filho como “Unigénito” e “consubstancial” ao Pai, uma dignidade que parece conferir ao Senhor – sobretudo após se ter sentado à direita do Pai e ter sido investido como Sumo Sacerdote – uma mediação absoluta que requer que a “companhia do Espírito Santo” em que ficaram os seus irmãos mortais depois da Sua Ascenção proceda também Dele como administrador de tudo o que, para nós mortais, procede do Pai ).

Do mesmo modo, a eclesiologia do Credo – e isto é muito importante – não tem a mínima referência a uma concepção institucional, clerical ou hierárquica da Igreja: ela é qualificada simplesmente de una (sendo discutível que isto possa querer dizer mais do que unidade espiritual dos crentes em Deus através de Jesus Cristo como Sumo Sacerdote), de universal e de continuadora da tradição apostólica (o que nada tem a ver com a inaceitável doutrina da “Sucessão Apostólica” mas sim com o facto de se proclamar que a Igreja é a Igreja dos apóstolos de Jesus Cristo, dos seus primeiros seguidores históricos, de quem todos os cristãos – até ao século IV e até hoje – receberam o Baptismo, sacramento que os baptizados vão transmitindo uns aos outros de uma geração a outra).

O Baptismo

Esta “transmissão histórica” (ou na História) do Baptismo é que torna a Igreja histórica e visível, revelando o seu verdadeiro carácter testemunhal e de traditio (passagem de testemunho). Quanto aos sacramentos, o Credo não proclama a crença senão no Baptismo (a que se refere como um só ), o que me parece corroborar a leitura de que a sua eclesiologia não define vínculos institucionais nem “comunitários”.

Estas considerações pretendem demonstrar que a fé original a que a ruptura protestante quis regressar desde o século XVI não era só o “textualismo” bíblico mas uma tradição genuinamente una, santa, católica (universal) e apostólica contida não só no processo que levou à formação do Cânone do Novo Testamento, mas também à formulação para-teológica do Credo “de Niceia”. E este Credo, tal como o Novo Testamento canónico, é que é o verdadeiro “depósito de fé” dos cristãos vivos, que recebem o Baptismo dos cristãos que os antecederam, mas não se sentem obrigados para com nenhuma outra realidade ou disciplina além desse mesmo depósito de fé (a aceitação do enunciado do Credo não significa que se aceite a legitimidade dos concílios sobre a liberdade de consciência dos cristãos – este é, pelo menos, o meu caso).