quarta-feira, julho 13, 2005
O Herculano que há a descobrir
As pessoas julgam que conhecem as coisas e, muitas vezes, não conhecem. Refiro-me àquelas coisas que estão debaixo dos nossos olhos, quase todos os dias. Digo coisas e posso dizer pessoas ou memórias de pessoas. Entre nós, por exemplo, toda a gente julga conhecer, ou saber o que há saber de, Alexandre Herculano. É um dos autores que todos tivemos de estudar no liceu, com o inevitável "Eurico, o Presbítero"; alguns saberão de outros romances históricos e da poesia, outros da "História de Portugal". Mas é nos volumes das matérias de política e sociedade dos "Opúsculos" que o Herculano perene está. E esse é o Herculano menos conhecido. É como pensador político e jurídico da sociedade portuguesa que Herculano legou um património doutrinal único e poderosíssimo, que não se reduz ao seu "municipalismo" como alguns o apresentam, ao seu gosto pela Idade Média (sem a interpretação do que isso significava realmente) ou à sua oposição à política de "fomento" do fontismo (como se teria oposto à de Salazar, à de Cavaco ou à agora anunciada de Sócrates). O Herculano liberal doutrinário, livrecambista, apoiante do modelo equilibrado da monarquia constitucional e da Carta, profundamente desconfiado da democracia (para ele, prelúdio do cesarismo), opositor da intervenção do Estado na economia (até para fazer caminhos de ferro) e com tudo isso bem enraizado num profundo conhecimento da história do País, é o grande autor que há para descobrir. Nos círculos liberais portugueses, onde há um deslumbre pueril por tudo o que seja pensador norte-americano ou inglês do passado, o tempo gasto a ler muitas vezes autores menores oriundos dessas paragens, seria melhor aplicado a descobrir um gigante que viveu entre nós. Um liberal clássico, puro e duro. E português!
Para o L&LP, que esperava um contributo "cosmopolita" da minha parte, este primeiro post pode surpreender. Aconselhar a redescoberta do "rústico" Herculano! Mas é que o cosmopolitismo, o verdadeiro e liberal (e que é diametralmente oposto ao internacionalismo dos radicais), para o chegar a ser, tem de estar bem enraizado algures, partir de uma tradição particular e nela descobrir o universal. Foi isto que fez Herculano, descobrindo mesmo na nossa história mais remota a universal apetência dos indivíduos e das localidades pela liberdade civil. Já o internacionalista, partindo de um geral desenraizado, é um provinciano pateta e deslumbrado com o ruído de alguns particulares que de universal só têm os instintos baixos da espécie, como a inveja e a paixão igualitária. É que, às vezes, os melhores exemplos estão-nos debaixo do nariz...
EDMUNDO BUARQUE