sexta-feira, julho 08, 2005
A verdade histórica (I): D. Miguel jurou a Carta
D. Miguel escreve, de Viena, a 6 de Abril de 1826, a D. Isabel Maria, reconhecendo inequivocamente a legitimidade de D. Pedro IV e até demarcando-se de movimentações políticas que, reclamando-se de si, pusessem em causa aquela legitimidade: «(...) tenho todavia reflectido na possibilidade de que algumas pessoas mal intencionadas, e com fins sinistros e repreensíveis, busquem excitar nesses Reinos comoções desleais e criminosas, servindo-se talvez do meu nome para encobrir perniciosos desígnios; (...) sempre encontrará a minha decidida desaprovação e desagrado tudo quanto não seja integralmente conforme às disposições do Decreto de 6 de Março do corrente ano, pelo qual Sua Majestade Imperial e Real [D. João VI], que Deus haja em Sua Santa Glória, tão sabiamente foi servido prover à administração pública, criando uma Junta de Governo para reger estes Reinos até que o Legítimo Herdeiro e Sucessor deles, que é o nosso muito Amado Irmão e Senhor [D. Pedro IV], o Imperador do Brasil, Haja de dar aquelas providências, que em Sua alta Mente julgar acertadas. Rogo-lhe, pois, minha querida Mana, que no caso, pouco provável, que alguém temerariamente se arroje a abusar do meu nome para servir de capa a projectos subversivos da boa ordem, e da existência legal da Junta de Governo (...) se faça público (...) em virtude da presente carta, os sentimentos que ela contém (...)» (cit. Luiz de Magalhães, "Tradicionalismo e Constitucionalismo", 1927, pp. 66-67).
A esta carta foi, de facto, dada publicidade oficial e D. Miguel escreveu de novo a D. Isabel Maria, a 14 de Junho, agradecendo esse facto (a carta está transcrita em Magalhães, pp. 67-68). O infante D. Miguel jurou a Carta em Viena a 4 de Outubro de 1826. O despacho do barão de Vila Seca, ministro naquela corte, ao ministro dos Estrangeiros, dizia o seguinte: «Nestas disposições, prestou o Sereníssimo Senhor Infante D. Miguel, no dia 4 do corrente, o juramento puro e simples da Carta Constitucional decretada e dada por El-Rei Nosso Senhor à Nação Portuguesa em 29 d’Abril do presente ano./ Este juramento escrito do próprio punho e assinado por Sua Alteza, foi prestado em minhas mãos e na presença do Visconde de Resende, ministro de Sua Majestade o Imperador do Brasil, que Sua Alteza quis que assistisse a este solene acto; reservando-se o Mesmo Senhor remeter o auto do sobredito juramento directamente a seu Augusto Irmão, por isso mesmo que foi El-Rei Nosso Senhor quem lho pediu» (cit. Magalhães, Op. Cit., pp. 70-71).
Logo a seguir se iniciaram as formalidades tendentes a consumar o matrimónio do infante com a sua sobrinha, D. Maria II, sendo solicitadas ao Papa as necessárias dispensas por motivo de consanguinidade. E «a 29 de Outubro, realizou-se a cerimónia na presença do Imperador da Áustria, assinando o contrato esponsalício D. Miguel, o Barão de Vila Seca, pela Rainha, o Visconde de Resende representando D. Pedro IV, e como testemunhas o Arquiduque Fernando, Príncipe Herdeiro, o Arquiduque Francisco Carlos, seu irmão, Carlos e José da Hungria e o Príncipe Metternich» (Id., p. 71). A 29 de Novembro, a Câmara dos Pares saúda o anúncio do casamento e, a 25 de Fevereiro de 1827, D. Miguel responde: «Este venturoso enlace, no qual, como vós tão judiciosamente dizeis, foram guardadas as veneráveis leis da Monarquia, perpetuando a Régia Autoridade na Augusta Família de Bragança, e preenchendo as paternais e prudentes vistas de meu Augusto Irmão e Soberano, bem como os meus próprios desejos, afiançará, mediante auxílio do Todo Poderoso, a paz do Reino e a prosperidade da Leal Nação Portuguesa».
A 3 de Julho de 1827, D. Pedro IV nomeia o infante Lugar Tenente, «outorgando-lhe todos os poderes que, como Rei de Portugal e dos Algarves, Me competem e estão designados na Carta Constitucional, a fim dele governar e reger aqueles reinos em conformidade com a referida Carta». D. Miguel responde, a 19 de Outubro, em carta enviada de Viena: «Senhor: Recebi o decreto que Vossa Majestade Fidelíssima houve por bem dirigir-me em data de 3 de Julho, pelo qual Vossa Majestade se dignou nomear-me Lugar Tenente e Regente dos Reinos de Portugal e Algarves e seus domínios: e conformando-me com as determinações soberanas de Vossa Majestade, ocupei-me desde logo das disposições necessárias para marchar a Lisboa a fim de preencher as sábias e paternais vistas de Vossa Majestade, governando e regendo os ditos Reinos em conformidade da Carta Constitucional por Vossa Majestade outorgada à Nação Portuguesa./ Todos os meus esforços terão por objecto a manutenção das instituições, que regem em Portugal, e contribuir quanto eu possa para a conservação da tranquilidade pública naquele Reino, e opondo-me a que ela seja perturbada por facções, qualquer que seja a sua origem, facções que jamais terão o meu apoio».
Na mesma data e nos mesmos termos, D. Miguel escreveu à Infanta Regente que ia substituir e ao Rei de Inglaterra, dando as mesmas garantias. A viagem de D. Miguel até Lisboa foi preparada em conferência realizada em Viena sob os auspícios do imperador austríaco, sogro de D. Pedro IV; uma das preocupações foi que o infante não atravessasse a Espanha e D. Miguel manifestou preferência de embarcar em Liorne num navio de guerra português que o levasse directamente para Lisboa. Entretanto, o embaixador inglês em Viena fez saber que os refugiados absolutistas em Espanha preparavam um golpe contra a Carta antes da chegada de D. Miguel a Lisboa; Metternich levou esta ameaça a sério, tal como o próprio D. Miguel, de tal modo que o infante se dirigiu ao Rei de Espanha, em carta de 21 de Outubro de 1827, pedindo-lhe que fizesse «conhecer aos ditos refugiados a minha completa desaprovação de tais projectos, que firmemente estou resolvido a reprimir».
Enfim, a 26 de Fevereiro de 1828, D. Miguel chegou a Lisboa e, perante as duas câmaras das Cortes e todo o corpo diplomático, prestou o seguinte juramento: «Juro fidelidade ao Senhor D. Pedro IV e à Senhora D. Maria II, Legítimos Reis de Portugal; e entregar o Governo do Reino à Senhora D. Maria II, logo que ela chegar à maioridade. Juro igualmente manter a Religião Católica Apostólica Romana e a integridade do Reino; observar e fazer observar a Constituição Política da Nação Portuguesa, e mais leis do Reino, e prover ao bem geral da Nação, quanto em mim couber». Magalhães, Op. Cit., p. 79, tem este importante comentário: «O Imperador d’Áustria, Metternich, os diplomatas português e brasileiro eram bem experimentados no trato dos homens e, por isso, psicólogos seguros, que um rapaz de 25 anos não iludiria facilmente./ Ora, nos apensos do protocolo a que me referi, há provas sobejas da confiança daqueles homens na rectidão das intenções do Infante e na sinceridade das suas palavras», citando um despacho muito claro nesse sentido, de Metternich (“o mestre dos diplomatas do seu tempo”) ao Príncipe Esterházy, embaixador da Áustria em Londres (citações dos documentos referidos nesta nota, em Magalhães, Op. Cit., pp. 72-77).
Perante tudo isto, a atitude usurpadora de D. Miguel a seguir ao seu regresso à capital e a inqualificável interpretação de miguelistas e absolutistas de que tudo fora uma dissimulação premeditada de D. Miguel, Magalhães prefere também acreditar que o infante era fraco de carácter e se deixou influenciar (como já provavelmente acontecera em 1824 por acção de sua mãe) porque, como comenta, «os fracos podem inspirar até compaixão; os traidores intencionais só excitam o desprezo e a repugnância» (p. 81).