Com a série de posts agora publicados, cobrindo os anos de 1900 a 1910, o L&LP iniciou uma revista sobre a primeira metade do século XX português (mais propriamente, sobre os anos decisivos de 1900 a 1948). Esta revisitação do nosso passado pretende ser um contributo para a reflexão desapaixonada sobre a nossa história política, evitando as arrumações simplistas em "esquerda" e "direita" ou em "dois Portugais", que, acreditamos, apenas distorcem a compreensão do passado e tornam o presente incompreensível.
Esta série não pretende, no entanto, apresentar um mero relato de "factos". Sem ser muito assertiva, a narração que aqui se faz tem uma linha de análise que se pode ir percebendo ao longo dos posts e, por isso, não nega que apresenta uma visão própria dos acontecimentos (como qualquer relato sobre o passado, assumidamente ou não, sempre faz).
Eis a linha de análise do L&LP:
a) A monarquia constitucional que foi derrubada em 1910 era um regime "moderno", com amplas liberdades civis e políticas que não se distinguiam muito daquilo que caracteriza o actual regime português;
b) O País vivia ainda, no princípio do século XX, na "ressaca" da crise financeira de 1891, com uma estagnação económica que, a partir de 1902 (com a renegociação da dívida) podia ser desbloqueada; os governos desta época mostraram uma capacidade considerável de reequilibrar as finanças públicas e refortalecer a moeda portuguesa.
c) O partido republicano era uma facção radical sem grande expressão eleitoral e só se tornou uma força decisiva dada a desagregação dos dois grandes partidos constitucionais, cujas facções o utilizaram nas suas contendas, fortalecendo-o politicamente.
d) O partido republicano chegou ao poder com um golpe de estado violento, poucos meses depois de umas eleições legislativas tão ou mais livres do que as realizadas depois de 1910 (e, pelo menos, com um direito de sufrágio mais alargado do que o da I República) e nas quais continuou a ser um partido com a expressão parlamentar que, por exemplo, tem hoje o Bloco de Esquerda.
e) A "separação" do Estado e da Igreja de 1911 foi, na realidade, a continuação de uma grande interferência política na vida institucional da Igreja (que acontecera desde a instauração da monarquia constitucional), mas agora sob um Estado que se dizia laico e que tinha uma política activa de impedir a expressão pública ou educativa de qualquer religião (as igrejas protestantes, por exemplo, que a monarquia constitucional tolerara, foram igualmente afectadas por esta nova política).
f) Em último caso, a I República conduziu à formação de um forte movimento católico independente do Estado em Portugal (organizações de leigos sob a direcção da hierarquia clerical, mais tarde organizadas na Acção Católica) que estava praticamente impedido de se desenvolver no âmbito da sujeição constitucional e parlamentar da Igreja antes de 1910.
g) A tomada do poder pelos republicanos representou, pura e simplesmente, a instauração de uma ditadura de partido único em Portugal: entre 1911 e 1913 só os republicanos (ou quem eles tolerassem, como o partido socialista de Azedo Gneco) puderam participar nos actos eleitorais, de que resultou a chamada "assembleia nacional constituinte" de 1911 e o "parlamento" de 1913.
h) Apesar da ilusão de normalidade criada pela história eleitoral da I República, este regime inaugurou uma situação quase constante de guerra civil no País: essa guerra civil não foi entre adeptos e adversários da República, mas entre os próprios republicanos, depois da desagregação do PRP em 1911 e com a extrema politização e partidarização das forças armadas por essas facções republicanas;
i) Os dados estatísticos relativos ao rendimento real dos Portugueses, à emigração e à evolução da economia, não permitem outra leitura que não seja a de que a I República foi, em termos económicos, um cataclismo que se abateu sobre o País (veja-se, em particular, os posts relativos a 1920 e a 1922).
j) O 28 de Maio de 1926 foi um acontecimento político-militar perfeitamente interno às lutas políticas do regime republicano e é errado lê-lo em termos de "esquerdas" e "direitas", quando os seus protagonistas e apoiantes eram quase todos oriundos do republicanismo mais "puro" e ideológico dos tempos da propaganda.
l) O facto dos republicanos do 28 de Maio (civis e militares) terem favorecido uma pacificação com a Igreja Católica não significa que fossem menos republicanos que Afonso Costa, apenas que haviam percebido que a duração da República autoritária que queriam instaurar dependia de incluírem nela os católicos (o que implicava algumas, mas poucas, concessões, como a legalização da Acção Católica).
m) A ascensão de Salazar tem de ser compreendida como a de um homem que permitiu operar a transformação da República naquilo que as facções dominantes de militares e civis da ditadura de 1926-33 queriam que ela se tornasse: um regime que cortasse definitivamente com a herança "espúria" do constitucionalismo parlamentar herdado da monarquia liberal e que impedia a sua refundação como um Estado nacionalista, unitário e livre do pluralismo "caótico" que em 1910-11 não fora ainda possível aniquilar por falta de "organização" e "disciplina" nas hostes republicanas.
Boa leitura - e boa reflexão.
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